ღ CAPÍTULO 42 ღ

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Beatriz


      O GRITO ECOA. Tudo o que meus ouvidos conseguem captar é um grito alto carregado de dor que me perfura o peito causando um sofrimento que se expande e que se fixa em toda a extensão de minha pele. Nada das altas batidas do som da festa. Nada do irritante murmurinho de corpos de adolescentes bêbados ou alegres. E nada, absolutamente nada do som de pneus derrapando pelo asfalto de piche negro.

     Somente um grito.

      Um grito de Dante...

      Durante os anos em que me dediquei a escrita, onde me vi fascinada por criar personagens e acontecimentos frutos de uma imaginação só a mim pertencente, sempre me questionei se estaria mesmo descrevendo todas aquelas vivências corretamente, de forma totalmente fiel a veracidade da cotidiana vida humana.

      Será que isto realmente aconteceria?

      Será está uma situação realmente possível?

      Será realmente está a dor sentida?

      Foram tantos e mais tantos "realmentes" dentro dos mais variados questionamentos, que somente agora, descubro o verdadeiro realmente da vida.

      Descrever sentimentos não é nada comparado com que senti-los esfolando a sua pele. Nunca, eu jamais teria tido o êxito em descrever com apenas palavras o que acabo de vivenciar. As emoções humanas não podem ser presas em meras folhas de papel.

      Mas, talvez seja porque tudo o que está a desenrolar aqui, não seja simplesmente um acidente envolvendo uma garotinha e seu recém ganhado cachorrinho, e sim, envolvendo uma jovem garota que acaba de sair do colegial e que caminha rumo a faculdade. E o mais pavoroso, é não só saber, mas sentir que esta garota sou eu.

      Não vejo nada do que acontece. Sou cegada pelo terrível brilho das luzes brancas antes de tudo sumir. Tudo escurece na mesma velocidade que começa. Não olhei para os lados, não me toquei de onde eu estava, tudo o que eu almejava era cair nos braços de Dante, envolvê-lo em um abraço e girarmos os dois pela rua irradiando o sentimento que nos domina.

      AMOR...

      Quando tudo volta, já não estou mais no mesmo lugar e já não me encontro mais em pé. O preto da minha vista deu lugar as poucas estrelas do céu que não são apagadas com a intensidade das luzes dos postes. Estou deitada. Meu corpo todo parece gritar. Minha cabeça lateja com o zumbido que penetra os meus tímpanos. Tenho vontade de cobrir os meus ouvidos, tenho vontade de cessar o som que me ensurdece aos poucos.

      Tenho vontade de respirar...

      Mas tudo doí.

      Doí de uma maneira incontrolável e inumana.

      Sinto uma presença quando alguém se joga ao meu lado. O perfume amadeirado que tanto gosto chega até mim. Não consigo ouvir o que ele fala, mas consigo perceber o pânico que se alastra por todo o seu corpo ao sentir sua mão envolver a minha, enquanto a outra retira os fios de meu cabelo que se encontram molhados em meu rosto. Ele está tremendo.

      — Cl...Cline? — Consigo distinguir quando escuto o meu nome ao longe. — Olhe para mim, por favor...

      Minha visão começa a se ajustar quando movimento as minhas pupilas na direção da voz de Dante. Vejo o seu vulto mexer e entrar na minha frente, impedindo o brilho amarelado das luzes de machucar os meus olhos.

      Quando finalmente focalizo em seu rosto, eu me arrependo. Seus olhos não transmitem mais a comum tranquilidade sempre presente neles, o que vejo é o medo. O sentimento parece ter corroído todo o azul, só enxergo o medo. O medo de que algo pior aconteça. Só neste instante, me dou conta do que realmente aconteceu, do que realmente poderá acontecer. E vejo, que talvez os malditos olhos que tanto amo, não estejam apenas transmitindo, estejam também refletindo o medo pulsante presente nos meus pobres olhos castanhos.

      — Dante... — Balbucio.

      Seu nome rasga toda a extensão da minha garganta de dentro para fora ao sair pelos meus lábios. A dor irrompe novamente. Sinto algo diferente dentro de mim, como se estivesse a cutucar os meus órgãos, para que me cause ainda mais dor. É horrível! Pareço um pequeno boneco vodu maltrapilho que de tanto ser torturado, já começou a sentir os efeitos que eram destinados a outra pessoa.

      — Não fale, meu amor... — Falta-me o ar. Uma lágrima gelada desce pelo canto do meu olho. — Preciso que você não tente se mexer, nem um pouquinho. Fique parada. Vai ficar tudo bem. Okay, Cline?

      Aperto levemente a sua mão ainda presa na minha. O vejo sorrir. Um sorriso doloroso que ninguém nesta terra deveria ter de estampar em seu rosto. Está doendo. Meu corpo todo está doendo. Cada centímetro dele está tomado pela dor. Meu coração está doendo. O coração de Dante está doendo.

      A movimentação se intensifica ao meu redor. Consigo distinguir com uma lentidão frustrante o que julgo ser passos e até mesmo flashes de celulares. Sou o que está alegrando o fim da noite de muitos dos adolescentes desta festa. Meu corpo estirado no chão negro. A ardência dos machucados nas minhas pernas aumenta quando sinto o peso de algo cair sobre elas, cobrindo o que o vestido antes branco não estava mais a cobrir.

      — Desculpe. — Ouço a voz de Dante sussurrar em meus ouvidos. Sua respiração morna extremamente próxima de meus ouvidos me tranquiliza apesar da preocupação em sua voz.

      Fecho os meus olhos.

      Me imagino imersa em um grande oceano, a água extremamente gelada entorpecendo a dor enquanto as ondas revoltas levam o meu corpo para cada vez mais longe.

      Para cada vez mais perto do escuro.

      — Cline... Cline... — Dante chama-me com uma urgência desesperada. — Cline, abra os olhos. Tente ficar acordada. — Junto as minhas forças e forço-me a realizar o seu pedido ao sentir sua mão correr delicadamente por minha face machucada. Quando o faço encontro ele olhando para os lados e conversando com alguma pessoa a nossa volta. — Eles já estão chegando. Você vai ficar bem, Cline. — Diz voltando-se a mim.

      As palavras chegam a mim como uma promessa. Dante parece dizê-las mais para ele do que para mim. Nas entrelinhas de sua frase, sei que ele quis dizer que fará de tudo para que eu fique bem, que estará disposto a tudo por mim. E são essas constatações que aumentam ainda mais o medo incrustado em meu âmago.

      Já não sinto mais a dor em minhas costelas ou em minhas pernas, a ardência dos machucados parece ter evaporado da superfície de minha pele, tudo o que sinto é uma pressão volumosa em meu peito, como se alguém estivesse agora por cima de mim forçando-me com agressividade a fazer algo que não quero. Essa é a mesma sensação angustiante que senti há exatos dez anos atrás, quando eu era apenas uma criança de sete anos sendo violada pelo próprio pai, um homem completamente diferente do que ela sempre conhecera. Uma lágrima escapa de meus olhos.

      — Vai ficar tudo bem, Cline. Eu prometo. — Dante repete com o rosto próximo ao meu. — Eu amo você, Cline.

      Quero me agarrar a estas simples palavras que saíram de seus lábios e me livrar deste peso incômodo no meu coração. Mas não dá... Simplesmente não dá! Meus olhos transbordam um líquido quente e lamurioso, eles parecem ser os únicos que ainda respondem aos meus comandos sem me causar uma dor física terrível. Existe um poético ditado e ele diz:

      "Os olhos são as janelas da alma."

      Neste momento, não estou rezando para que Deus ou qualquer outra entidade divina me livre de qual for o meu destino, estou rezando apenas para que os meus olhos castanhos, apesar de todas as lágrimas e de toda a dor presente que embaçam o seu brilho, consigam dizer a Dante o que deixei de dizer nesta noite quando tive a oportunidade presa em minhas mãos.

      Quero apenas que ele saiba, que sim.

      Eu também o amo. 

AMORES ETERNOS - A História de Dante e BeatrizOnde histórias criam vida. Descubra agora