CAPÍTULO VINTE E TRÊS

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   O clima ficou tão estranho quanto o dia que Kurama pegou o último bolinho de carne suína do prato do Shin.

   Tendo um amigo imprevisível, era natural ele ter adquirido uma sensibilidade a ameaças silenciosas, e Ishii Hikari havia claramente ameaçado desfigurar seu rosto. Se Ren não tivesse aparecido naquele exato momento, Hikari teria o agredido e com isso, Shin iria aparecer dos confins do inferno e a família Ishii estaria entrando em um profundo luto.

   Sua intenção ao arremessar o pedaço de bastão em Hikari havia sido puramente testar seus reflexos, ele não tinha sentido a presença de outra pessoa, nem sentindo o cheiro da pessoa que estava com ela. A cabana no Vale dos Bambus era sempre frequentada pelas mesmas pessoas havia anos, nunca passaria pela sua cabeça que havia outra pessoa com a Ishii.

   No entanto, após o incidente ele teve consciência de três coisas: a garota de NY poderia ser considerada uma ameaça, mesmo que ele nunca tenha a visto em ação além dos furtos que presenciou ao vigia-lá, dava para notar que a garota tinha evoluído; teve ciência de que aquela garota estava envolvida com os irmãos; e não era qualquer envolvimento. 

   Shin e Kurama possuíam uma vida social assustadoramente limitada. Eles sempre iam aos mesmos lugares e falavam com as mesmas pessoas. Mas enquanto Shin não tinha interesse em nada que não fosse fugir do radar, Kurama possuía uma curiosidade insaciável. 

   Como um estudioso de cultivo espiritual, era esperado que ele tivesse interesse em coisas incomuns. E logo de cara os irmãos Ishii chamaram sua atenção, isso porque eles eram gêmeos e ambos estavam vivos, o que significava que havia uma história incrivelmente interessante por trás. 

   Gêmeos meio-youkais eram muito raros, mas não no quesito fecundação e sim por causa da gestação. Muitos hanyous e humanos eram capazes de gerar gêmeos, no entanto, a probabilidade de ambos os fetos sobreviverem à gestação era muito baixa, o que os tornavam raros. Não há importância se são da mesma placenta ou não, o decorrer dos acontecimentos são os mesmos.

   Durante o processo da fecundação o gene youkai se divide entre os dois embriões, passando pelo processo ao mesmo tempo, mas o gene youkai não é capaz de sobreviver a uma divisão. Por isso, ao decorrer da gestação uma das crianças vai morrendo enquanto os traços do DNA do youkai se enfraquecem. Somente situações veladas podem fazer com que ambos sobrevivam. E o que aconteceu com os irmãos Ishii torna uma aproximação com terceiros muito arriscada. 

   Akemi estava treinando com Ren no gramado, ambos tentando invadir a defesa do outro com longos bastões. Eles estavam concentrados demais no treino para notar Kurama se aproximando de Hikari, sentada nos degraus do engawa. 

   ㅡ Ela sabe? ㅡ Indagou ele, sentando ao lado da garota, seu olhar nos dois hanyous treinando.

   ㅡ Claro que você não deixaria passar sem meter o nariz onde não é chamado ㅡ retrucou Hikari com rispidez. 

   ㅡ Você não me respondeu. 

   ㅡ Sua pergunta não foi específica o suficiente. 

   Kurama não conteve o sorriso. 

   ㅡ Ela sabe sobre você e seu irmão? ㅡ Reformulou a pergunta com extrema delicadeza.

   ㅡ Não. 

   Fala sério. 

   Kurama se viu estupefato, seu sorriso antes de descontração se tornou amargo, nem ele mesmo se reconheceu.

   ㅡ Você não pode estar falando sério. ㅡ Olhou para a garota ao seu lado, incrédulo demais para poder acreditar. Por que ele se importava afinal? Não havia respostas possíveis. Suas palavras seguintes foram tão cortantes quanto a lâmina afiada de uma navalha. ㅡ Ela sabe que seria capaz de pular de um precipício no seu lugar?

IY- Ao Cair Da NoiteOnde histórias criam vida. Descubra agora