Capítulo 102

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Fazer o descarregamento dos mantimentos não estava no meu cronograma, mas eu estava disposta a tudo para ficar longe de Daryl, mesmo que meu corpo não estivesse contente com aquilo.

-Você não deveria estar numa ronda com Alec e os outros? Perguntou Ozônio. Meses de recuperação fizeram bem a ele.

-Você não devia ficar calado? Retruquei.

Ele entendeu. Sabia que eu estava escondida ali.

-Chega a ser deprimente olhar pra vocês agora.

Bufei. Queria atirar um saco de farinha atrás dele, o que eu infelizmente não podia fazer.

-Ah você tem que falar sobre isso uma hora- insitiu ele- Eu sei que dói, mas você tem que deixar doer.

Pulei do caminhão e tomei o rumo da floresta. Andaria quilômetros se significasse que eu teria silêncio. Mesmo o silêncio sendo tortuoso. Mas assim que cheguei a clareira a voz de Ozônio me deteve.

-Eu não quero que você sofra- disse meu amigo mais próximo.

Talvez por estar sozinha ali, meus olhos concordaram em se encher de lágrimas.

-Não vou conseguir entender nem se eu quisesse, o que você está sentindo. Mas eu tomaria isso de você se pudesse.

Eu sabia que era verdade, ele se importava demais.

-É que ele estava aqui- gritei para Ozônio sem conseguir me mexer- E agora não está mais.

Uma lágrima quente escorreu.

-Não é a vida que eu sonhei quando imaginava filhos, mas eu achei que pudessemos conseguir. Eu sabia que íamos conseguir.

-Você não tem culpa e nem precisa aceitar. Só não deixe isso te consumir tanto assim e nem afaste Daryl. Eu sei que dói em você, mas você tem que saber que isso dói nele do mesmo jeito.

Bufei. Aquela não era a questão.

-Eu sei que esse assunto não é meu, mas eu tenho o hábito de palpitar mesmo assim.

-Já percebi- bradei.

O peso daquelas palavras me consumia. Eu queria mesmo desabar nos braços de Daryl, então por que não desabava?

O olhar que ele sempre dirigia a mim... aquilo me cortava desde o dia em que soube que perdemos o nosso menino antes sequer que ele se tornasse nosso.

Mas ele não podia ter feito mais por nós, ele fez tudo o que pode, as circunstâncias é que não foram favoráveis. Havia muito luto entre nós, e somado as nossas vidas, que nem sempre foram doces, era uma barra difícil demais de suportar.

-Não quero te forçar a falar, mas não posso e nem vou deixar você aqui sozinha. Posso te acompanhar até em casa? Você tirou muito sangue hoje.

Respirei fundo.

-Claro- e comecei a andar. Acabamos não conversando mais, nem sobre assunto, nem sobre nada. Não era difícil estar em silêncio com Ozônio, ele sabia demais sobre mim. Me conhecia bem.

Quando chegamos a cerca que rodeava a minha cabana, ele se despediu em silêncio e eu entrei. Tudo ali tinha cheiro de novidade, e o frio já estava por ir embora, era um consolo ver o verde chegando ao longe, trazendo uma estação mais cheia de vida. A primavera sempre significara felicidade, mas eu me sentia incapaz de possuir esse sentimento novamente.

Quando entrei na sala, abri a porta da pequena sacada e meus olhos encontram a água, o rio a minha frente parecia infinito. Eu me perguntava sempre quando as coisas iriam começar a dar certo pra mim. Mas ainda não tinha olhado para trás e pensado nas coisas que eu já tinha conseguido. Sim, eu me perdi de minha família, mas com Daryl e os outros encontrei meu lar, e ele não era físico, era apenas ao lado deles. Tínhamos uma bela e forte equipe, sempre fomos capazes de coisas incríveis e afinal de contas, eu possuía uma cura dentro de mim com potencial para ser compartilhada, isso é muito mais do que sobrou para a maioria agora. 

Sentei na cadeira de praia e deixei o peso de um dia todo cair sobre mim, aquela foi a casa que escolhemos para ser nossa, e era estranhamente vazia. Daryl e eu temos nos evitado desde que perdemos nosso bebê, acho que foi um momento de muito impacto e ao invés de aceitar o seu consolo, eu o empurrava para fora.  

Ouvi o som da maçaneta girando, eu sabia que era ele, imaginei que seguiria com a sua rotina diária de ir diretamente a geladeira e depois pro banho, mas ele sentou-se na cadeira ao lado da minha e não falou nada por um longo tempo. 

-Geralmente você não está em casa nesse momento- comentou ele bebendo o último gole de sua cerveja. 

-Hoje estou- respondi porque não sabia mais o que dizer. 

-E como foi no descarregamento ? eu vi você lá em algum momento e te perdi de vista. 

Respirei fundo. 

-Me estressei com Ozônio, ele fala demais e isso tem me irritado. 

-Você costumava falar muito- relembrou Daryl com um sorriso discreto. 

Não pude deixar de rir. 

-Verdade, a suja falando do mal lavado. Mas não sinto mais vontade de falar tanto assim, as vezes parece que envelheci cinco anos e cinco meses. 

-Eu entendo- respondeu ele- O fardo que a gente carrega pode ser pesado demais as vezes.

Era exatamente o que eu sentia. 

-Comigo você não precisa falar-disse ele olhando diretamente para mim, os lábios levemente trêmulos- A nossa história foi intensa demais, passamos por muita coisa juntos e eu não posso cobrar nada de você. Eu só posso aceitar que algumas coisas não podem ser mencionadas em voz alta, porque elas tem um valor muito grande. E por mim tudo bem. 

Assenti e desviei o olhar, não podia chorar assim na frente dele, olhando dentro dos olhos dele. Era demais pra mim. 

-Obrigada por nunca exigir muito e ainda mais por ser paciente- falei mantendo a voz o mais firme possível. 

Ele levantou da cadeira e subiu para o banheiro, não esperei muito para ir atrás dele, talvez com o tempo fosse possível ter uma vida normal e menos assombrada pelo passado. 

Ele não pareceu surpreso quando entrei no box atrás dele vestindo apenas uma calcinha. Ele apenas regulou a temperatura do chuveiro  e molhou meu cabelo. 

Era isso, eu ficava pensando, uma coisa de cada vez, um dia de cada vez. 


DIXON - No Fim Do Mundo Onde histórias criam vida. Descubra agora