Capítulo 100

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-Me intriga que você tenha eliminado tantos zumbis sozinha e praticamente desarmada. Eu vi muitas pessoas, homens inclusive, muitos deles mais fortes e treinados que você perdendo o fôlego diante de um morto-vivo. Mas isso não pareceu lhe abalar. Você mal olhou para eles, não pareceu temê-los e acabou se livrando deles rapidamente- segundo Daryl.

Eu me lembrava bem do primeiro combate, meses atrás, dentro do supermercado. 

-Eu tive muito medo- contei a ele lembrando-me da promessa de que seria sincera- Tanto como nunca tive na vida. Mas eu me preparei para sair, para enfrentá-los, sabia que eles eram perigosos, um mistério. 

Algumas imagens de minha estadia na biblioteca percorreram meus pensamentos e eu as afastei. 

-Tive muitas noites sozinhas no escuro para chorar, até para rezar. Eu tremia de frio, mas na maioria das vezes era de puro medo. Os tiros, os gritos apavorados, a correria. Eu ouvia tudo da biblioteca, era o centro da cidade, onde tudo foi mais atingido. As rádios funcionaram por uns dois dias depois do ataque, e isso porque o radialista e um pequeno grupo de trabalhadores se esconderam lá esperando que tudo passasse. Eles noticiaram tudo o que recebiam pelo celular antes das torres pararem de funcionar, contavam até sobre o que viam da janela. Era pânico total, eles estavam apavorados, eu sabia disso. Mas pelo menos eles estavam em grupo. Sozinha, deitada sob o tapete, tudo o que eu fazia era olhar para a porta, eu havia arrastado uma estante para reforçar a segurança ainda quando Elise estava comigo, e ela também ficou apenas dois dias. Saiu assim que me mostrou onde ficava guardada a comida do pessoal que fazia a limpeza do edifício, Eu peguei tudo, levei comigo para a biblioteca e me tranquei lá uma semana inteira.

-E você não cogitou ir embora? perguntou Félix, não havia acusação alguma em sua voz. 

Assenti com a cabeça. 

-Muitas vezes, mas na última vez em que falei com meu pai- mencioná-lo enchia meus olhos de lágrimas- Eu prometi que o esperaria lá. Tive medo de não estar ali quando ele viesse, ou de chegar em casa e não encontrá-los. Mas eu tinha mais medo de por os pés para fora e acabar morta. 

Eu vi uma mulher ser atacada pouco antes de me refugiar na biblioteca, era quase impossível distinguir quem era humano e quem estava transformado, principalmente porque eu não tinha conhecimento que aquele tipo de ataque bizarro estava acontecendo tão perto. Quer dizer, eu não sou burra, eu assisti aos noticiários, eu vi imagens de como eles agiam, de como a doença estava se espalhando rapidamente pelo país. Mas ver aquilo tudo tão de perto foi demais para mim. Eu congelei sim, mas  eu tive tempo de me esconder e pensar sobre isso. Não estava na rua, no meio daquilo tudo, com todo mundo correndo e gritando sem saber de onde viria o perigo. Eu não fui pega de surpresa, mas muita gente foi. 

-Você ouviu isso pelo rádio? perguntou ele. Eu assenti. 

-Mas também não era difícil de imaginar, eu mesma imaginei mil hipóteses sobre como agiria caso tivesse sido surpreendida na porta de casa, a caminho do trabalho, no chuveiro, andando de bicicleta... 

-Não consigo imaginar na coragem que você precisou reunir para decidir sair de lá e andar até o mercado. E mesmo assim você foi, e por isso nos encontramos aqui, depois de tudo isso- disse ele em voz baixa. Aposto que nessa parte da conversa ele não desejou ter pedido para Louis registrar tudo. Pela sua expressão, ele gostaria de estar a sós comigo. Mas Louis não moveu um músculo além das mãos que redigiam tudo, então continuamos. 

-Eu ouvi o último grito exatamente nove dias depois que tudo começou. Então passaram-se alguns dias e nada. Espiei pela janela e enxergava a rua, volta e meia algum andarilho passava por lá, as vezes passavam em grupos maiores. Eu ficava feliz de estar longe da rua e mais ainda de estar em uma biblioteca, porque ninguém iria procurar comida ou água lá. Foi quando eu abri a porta pela primeira vez, olhei para o corredor. Como você sabe o andar da biblioteca era aberto, de modo que eu podia ver a rua ao lado da praça central que estava um pouco mais distante que a do mercado, mas tinha pouca movimentação em ambos os lados, então eu saía de vez em quando, indo até quatro ou cinco passos a frente da porta, pegava um sol no rosto e voltava correndo. Mais ou menos nessa época entendi que meu pai estava morto, do contrário teria me procurado há muito tempo. Eu estava perto demais dele naquele primeiro dia, então por que outro motivo ele demoraria tanto? 

Admitir aquilo doía, fazia a saudade crescer e aumentar. Meu pai adoraria ter um neto e eu não gostava da ideia de criar meu filho em um mundo onde uma pessoa como ele não estivesse presente. Daryl deve ter percebido o meu incômodo, pois perguntou se eu gostaria de parar e continuar em outro momento. Mas eu achava impossível concordar em passar por aquilo de novo. 

-E quanto a prefeitura? continuou ele- Eram uma base do governo. Deveriam estar a sua procura, e você sobrevivendo ali tão perto... Não desconfiou que alguém além de você estivesse escondido por perto?

Neguei com a cabeça. 

-Imaginei que eu era a única azarada que estava fora de casa. Eu não pensei que todos estivessem mortos, só que estivessem isolados em casa. Pensei o mesmo sobre a minha família, mas o meu pai é militar, e eu sou filha dele. Com a minha mãe era diferente, não nos dávamos bem, mas o meu pai era tudo para mim, se estivesse vivo me procuraria e minha família não sobreviveria sem ele. 

-Sinto muito- foi a primeira vez que Louis abriu a boca desde que começamos.

-Obrigada- respondi a ele. Eu tinha superado isso, só era difícil demais as vezes. Mas com a história toda de ficar viva para salvar o que sobrou da nossa espécie mantinha meus pensamentos longe dessa dor. E agora com o bebê sobrava ainda menos tempo para isso. 

-Estou percebendo uma grande evolução desde a nossa última conversa- disse Félix se aprumando na cadeira.

Sim, eu realmente estava mais calma. Mas ele também parecia uma pessoa diferente. O que um mês não faz na vida das pessoas...

-Não precisamos relembrar aquele dia, se não se importar- respondi. Ele concordou.

-Vamos continuar falando sobre o passado na próxima visita. Mas antes de ir, vamos falar sobre como estão indo os planos com o bebê.

-Especular a vida do meu filho talvez seja um pouco demais- resmunguei.

Ele desculpou-se.

-Você não precisa responder nada que não queira. Se julgar muito pessoal ou se simplesmente não estiver afim de falar é só me avisar.

-Ok.

-Você já sabe o sexo?

Eu abri um sorriso radiante. Louis esperou ansiosamente a minha resposta.

-É um menino! Mas por favor... eu descobri hoje e Daryl ainda nem sabe...

-Não precisa pedir duas vezes. Vai ser uma honra guardar um segredo seu. Não é Louis?

E meu amigo apenas concordou sorrindo.

                     V. O. T. E. M.

DIXON - No Fim Do Mundo Onde histórias criam vida. Descubra agora