O Altar dos Nove

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Vorquer sentiu seu corpo reagir a mais um pulo espacial a bordo de uma das partes do Vestígio, dessa vez. Montblanc nem se deu o trabalho de protegê-lo no congelamento. A viagem com meses de duração era pesada, e o professor não tinha mais a capacidade resistiva de antes. A curiosidade, que fora seu combustível durante boa parte da jornada, havia se esgotado com o final da aventura. Tudo o que se passava em sua mente era a lembrança traumática da morte de Grunao e o peso da traição de Montblanc. Os dias eram indiferentes e sombrios dentro da nave, e a presença da nona estátua piorava as coisas.

— Estamos chegando ao Altar dos Nove – disse o piloto, e único clone durante o percurso. – Se prepare, desembarcamos em quatro saltos na lua – se aproximou de Vorquer, que estava caído aos pés do pedestal provisório da estátua. – Deveria tomar um banho e se alimentar com algo mais nutritivo, está fedendo e definhando – saiu.

O professor se olhou no reflexo metálico de uma peça do interior da nave, viu sua barba cinzenta suja e os olhos profundos. Ao acariciar o rosto magro, sentiu a fraqueza na tremedeira dos dedos finos. A ração de emergência era tudo o que vinha comendo há meses, mesmo Montblanc ordenando que se alimentasse com a comida do suprimento.

— Levante-se, ó, grande ancião, e faça-se do poder à sua menção sobre as terras desoladas – sussurrou Vorquer para si mesmo. Ficou em pé com dificuldade e observou a estatueta. – Sejam tuas a admiração e a fé dos fracos, sejam tuas a força da existência e a razão dos sacrifícios.

Montblanc assistiu escondido a declamação das palavras.

Vorquer caminhou até uma mesa com frutas, pegou o pedaço de uma pera vermelha e mastigou com vontade, deixando o caldo escorrer pelos fios da barba. Foi se apoiando na parede até chegar ao banheiro do seu quarto, nos fundos da nave. Encheu a banheira, mas deixou a água correr pelo ralo, mantendo o fluxo com o chuveiro. Então tirou as roupas sujas e desgastadas, sentindo seus ossos estalarem nos movimentos sutis e lentos. Viu o estado de seu corpo nu, raquítico, pálido, cheio de feridas e com os pelos incrustados em todo tipo de sujeira.

Ele entrou e se sentou, a água morna do chuveiro caia sobre sua cabeça e escorria para a banheira. Sentiu ela entrar na sua boca e molhar sua língua desidratada. A ardência de seus olhos ressecados desapareceu gradativamente e de forma relaxante. Finalmente, a dor de seu corpo era menor que a dor mental, e ambas estavam igualadas há meses.

Montblanc entrou no quarto sem pedir licença, trazia uma caixa branca e uma garrafa de vinho de pera celeste. O professor estava em pé na porta do banheiro, enrolado em uma toalha encardida.

— Vorquer, tenho um presente para você – disse. – Merece muito mais do que pude te dar todo esse tempo, e sua jornada...

— ... e minha jornada me levou ao fim, e lá vi o começo e todos os falhos meios – completou Vorquer em sua voz fraca. – Faz meses que não fala comigo, mesmo passando por mim quase o tempo todo.

O clone o observou de cima a baixo com olhar misericordioso.

— Você cumpriu seu objetivo para mim, e acho que não agradeci como deveria ter feito – disse Montblanc. – Reconheço o tamanho da sua perda e quero recompensá-lo, até porque sei que não vai viver muito.

Vorquer sentiu seu choro subir e uma lágrima mirrada aparecer.

— Olha, lágrima depois de meses chorando a seco – comentou o professor ao enxugá-la. – Eu a sinto sugar toda minha vitalidade.

— Até pouco tempo atrás, a morte me era algo constante e parecia que só havia um vazio sombrio em mim – disse Montblanc, abrindo a garrafa de vinho. – Então, certo dia, questionando a realidade das coisas ao meu redor, descobri o primeiro templo. Eu morria centenas de vezes todos os dias até que isso tomou conta do meu ser e me deu objetivo para seguir em frente. Só de saber que muito da nossa existência vem antes de qualquer criação, me completou – serviu dois copos. – Eu me senti livre e revigorado como nunca antes, mesmo considerando os acontecimentos de Suprária e os Supremos – ofereceu um copo para Vorquer. – Só estou querendo dizer que..., você faz parte de algo absurdamente grande.

Sete Vidas em Nove Mundos - O Segundo FinalOnde histórias criam vida. Descubra agora