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Let all out

- Alice Escobar -

Eu nunca tinha contado isso para ninguém além de Neymar.

Eu me lembrei do cuidado que havia tomado para que ele não soubesse. Como eu poderia explicar o jeito como o tempo parecia escorregar por entre meus dedos, o jeito como me tornei cada vez mais distante, mais incapaz de estender a mão para qualquer coisa que eu queria? Não podia permitir que ele sentisse mais pena de mim do que já sentia.

Mas eu me deixei levar pelo momento e contei o que não deveria ter contado.

Tive vontade de culpar todo aquele álcool que eu tinha bebido no evento do Barcelona.

- Falta muito para chegarmos a esse destino misterioso? - Perguntei. -  Estamos andando há tanto tempo que começo a me perguntar se vou precisar de autorização internacional.

- Você está falando sério? - Gavi retrucou ao meu lado. - Só se passaram talvez uns cinco minutos.

- Caminhar por três quilômetros... colina acima, no calor, de terno... e você não deixa cair una gota de suor. - Eu disse. - Não me deixou nem descansar por trinta segundos. Mas uma escada... sim, isso é demais para você. Faz sentido.

- Estamos muito perto agora.

E realmente estávamos. Em poucos minutos ele anunciou:

- Chegamos. - Gavira anunciou.

Levantei o olhar de meus pés para a paisagem.

Céus, aquilo era um clássico clichê de filme adolescente. A vista de toda a cidade iluminada. Só faltava ele dizer: eu venho aqui para pensar.

- Eu gosto de vir aqui quando preciso pensar ou fugir da civilização. - Ele disse.

- É isso que nós vamos fazer? - Indaguei. - Viemos pensar?

- Ou fugir da civilização... Mas não, não viemos fazer exatamente isso.

Gavi caminhou até uma pedra e se sentou. Pegou a mochila de suas costas e começou a procurar por algo. Não demorou muito e ele retira duas canetas e...

- Por que você tem dois pratos na mochila que estava com a sua chuteira?

Não obtive resposta para essa pergunta.

Ele me estendeu um dos pratos brancos e uma das canetas pretas.

- O que você espera que eu faça?

- Escreva tudo o que te perturba. - Ele respondeu. - Escreva tudo o que você quer deixar para trás, tudo o que te reprime, tudo o que te assusta, ciclos que você quer encerrar...

Arqueei as sobrancelhas para ele.

- É um método terapêutico. - Se justificou. Deve ter percebido que estava sendo julgado. - Confia em mim?

- Nenhum pouco. - Sinceramente, respondi.

Gavi riu e apontou para uma pedra que eu poderia sentar. Eu me sentei. Respirei fundo antes de começar a escrever naquele prato.

Escrevi sobre meu genitor, Anderson Vasconcelos, sobre a dor que eu sentia em relação as mortes de toda a minha família, menos a de Anderson, a morte dele foi um alívio, sobre o fato de eu não superar todas as coisas ruins pelas quais eu passei, sobre o meu medo de amar novamente, sobre o terror que tenho de deixar alguém entrar na minha vida, sobre os fantasmas que me visitavam, sobre a pressão da mídia, sobre a falta de privacidade, sobre o medo de alguém descobrir algo de meu passado, sobre o medo de mais alguém próximo morrer, sobre o quão recorrente eram as minhas crises, sobre os cortes que eu fazia em mim mesma.

Em CampoOnde histórias criam vida. Descubra agora