Protocolo

3.1K 463 229
                                    

Voltei!!!

Alerta de gatilho em abuso psicológico.


***


– Na vida você precisa seguir um protocolo...

Eu gosto do barulho que o vento faz quando passa por minhas orelhas e balança meu cabelo, é quase imperceptível, mas eu consigo ouvir, é suave e é calmo. As árvores balançam no verão, as folhas fazem um barulho diferente pra cada tipo de folha, e um barulho ainda mais diferente quando o vento leva embora as folhas que já caíram no chão.

É verão, e no jardim tem muitos girassóis plantados, e uma árvore de flores amarelas que eu não sei como se chama, mas é bonita. Eu gosto de girassóis, eu gosto da árvore de flores amarelas, amarelo é bonito, eu gosto de amarelo. No verão tem sempre flores amarelas, e eu gosto do verão.

– Garota, está me ouvindo? – Ele segura meu braço e me chacoalha com força, seu hálito alcoólico próximo ao meu rosto faz minhas narinas queimarem. – Estou falando com você. O que é que você está olhando?

– As flores – Respondo.

Ele olha ao nosso redor. – Você gosta das flores? Elas são bonitas?

Concordo com uma ceno de cabeça.

Por alguns minutos ele me deixa sozinha em nosso quintal e some para dentro da casa, então retorna com uma grande tesoura nas mãos.

Meu coração acelera.

Sem dizer nada, ele começa a cortar com a grande tesoura enferrujada, todos os girassóis de nosso jardim. Sem sustentação, todas as flores caem no chão, eu nada posso fazer. Sinto minha garganta se fechar, eu faço de propósito, eu prendo minha própria respiração, mordo minha própria língua, me provoco outra dor para não sentir a dor que ele tenta me provocar.

Eu costumava apertar as mãos com força, mas minhas unhas deixam as palmas de minhas mãos machucadas e eu não posso ter nenhum tipo de marca em meu corpo. Não devo correr, não devo me descuidar, não posso cair, não posso me machucar.

Papai diz que sou um produto com valor de mercado, qualquer arranhão que eu tiver, perco meu valor.

Sinto vontade de chorar, mas não posso chorar se ele não me mandar chorar, na última vez que eu o fiz, fiquei dois dias sem comer. Eu sigo o protocolo.

Ele me pega novamente pelo braço e me arrasta para dentro da casa, eu sei aonde ele está me levando, eu sinto medo, mas não posso demonstrar. Papai me leva até o porão.

– Se coisas bonitas te distraem, você deve eliminá-las – Ele fala com ódio. – Você me entendeu?

Concordo com um aceno de cabeça.

– Diga!

– Sim, senhor.

– Fique aí até que esteja pronta para conversar como uma pessoa decente e seguir o protocolo – É tudo o que ele diz antes de trancar a porta e apagar a luz.

O porão é um quadrado vazio e sem janelas, com uma única cadeira branca no centro. As paredes, o chão e o teto são cinzas, acho que só nunca foram pintados, porque não consigo imaginar quem se daria ao trabalho de pintar algo de cinza, cinza não é cor, é a ausência. Aqui não tem nada para ver, não tem nada aqui dentro, nem luz.

Antes ele costumava deixar as luzes acesas, mas eu me distraia com a sombra que meu corpo produzia quando eu me movimentava, eu não devo me distrair, não devo fazer nada que ele não me mande fazer. Preciso cumprir o protocolo.

Duas Marcas - Freenbecky (GAP)Onde histórias criam vida. Descubra agora