Capítulo 74

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Mal consigo respirar. Será que eu quero mesmo ouvir isso? Simone  fecha os olhos e engole em seco. Quando os abre novamente, estão brilhantes e acanhados, cheios de lembranças inquietantes.


(Simone): Era um dia quente de verão. Eu estava trabalhando bastante —diz ela, com a voz rouca, e balança a cabeça, repentinamente achando graça. — Era bem puxado, retirar entulho. Eu estava sozinha, e a Elen… a Sra. Lincoln apareceu do nada me trazendo limonada. Batemos um papo, coisas banais, até que eu fiz um comentário debochado… e ela me deu um tapa. Um tapa bem forte. 


Inconscientemente, sua mão vai ao rosto e ela acaricia a própria face, seus olhos se anuviando por causa da recordação. Puta merda!

(Simone): Mas aí ela me beijou. E, quando acabou, me deu outro tapa. — Ela pisca várias vezes, aparentemente ainda confusa mesmo depois desse tempo
todo. — Eu nunca tinha sido beijada antes, nem nunca tinha levado um tapa
daquele jeito.

Ah! Ela partiu para cima dela. Uma menina.


(Simone): Você quer ouvir isso? — pergunta Simone.

Sim… Não…

(Soraya): Só se você quiser me contar. — Estou deitada fitando ela, e minha voz sai
bem baixa, minha mente a mil. — Estou tentando contextualizar. Faço um gesto com a cabeça, anuindo e — espero — incentivando ela a prosseguir. Porém, suspeito de que eu talvez esteja parecendo uma estátua, imóvel, em choque, os olhos arregalados.

Ela franze o cenho, seu olhar procurando o meu, tentando avaliar minha reação. Depois se deita de costas e fica mirando o teto.

(Simone): Bem, naturalmente eu fiquei confusa, irada e chei de tesão. Quer dizer,
uma mulher mais velha, toda gostosa, aparece e se atira em cima de você daquela maneira… — Ela balança a cabeça como se ainda não conseguisse acreditar.

Gostosa? Fico enojada.

(Simone): Ela voltou para dentro da casa, deixando-me sozinha no quintal. Agiu
como se nada tivesse acontecido. Fiquei completamente perdida. Então voltei
ao meu trabalho, despejando o entulho na caçamba. Quando saí de lá, à noite, ela me pediu para voltar no dia seguinte. Nem mencionou o que tinha acontecido. E no outro dia, quando eu voltei, mal podia esperar para ver a Sra. Lincoln de novo. — Ela fala num murmúrio, como se fosse uma confissão sombria; e, francamente, é mesmo. — Ela não me tocou quando me beijou — continua ela, e vira o rosto para
mim. — Você tem que entender… minha vida era o inferno na terra. Eu tinha
quinze anos, era alto para a minha idade, vivia com tesão o tempo todo, os hormônios ensandecidos. As garotas da escola…


Ela para por um momento, mas eu imagino o quadro: uma adolescente Intersexual, amedrontada e solitária, mas atraente. Meu coração se contorce.

(Simone): Eu vivia com raiva, uma raiva tão grande, irada com todo mundo, eu mesma, minha família. Não tinha amigos. Meu analista na época era um babaca completo. E os meus pais… eles me mantinham com rédea curta, não
conseguiam entender.

Ela volta a olhar para o teto e passa a mão nos cabelos soltos. Minha mão está
coçando de vontade de fazer o mesmo, mas fico no meu lugar.


(Simone): Eu simplesmente não suportava que ninguém me tocasse. Não suportava. Não suportava ninguém perto de mim. Eu me metia em brigas... porra, muitas brigas. E umas bem pesadas. Fui expulso de algumas escolas. Mas era uma maneira de extravasar. De tolerar algum tipo de contato físico. — Ela interrompe o relato novamente. — Bom, você já tem uma ideia. E quando ela me beijou, só segurou o meu rosto. Não tocou em mim. — Quase não ouço sua voz.

Cayendo en la Tentación III - Simone & SorayaOnde histórias criam vida. Descubra agora