A DEFORMIDADE DA ALMA

108 40 43
                                    

Minha garganta está cortada, escorre sangue, mas é superficial, toco a ferida e sinto um pequeno caco de vidro dentro, removo-o devagar, mas dói mesmo assim. É bem pequeno, mas fez um belo estrago, faço um auto-exame, estou coberta de sangue e cacos, a casa também. Há quanto tempo estive no chão? Tenho a impressa de que meu corpo estava deitado aqui e meu espírito analisava as lembranças em flashes na parede. A velha controlou meu corpo, quando o senti agir de forma estranha foi por isso, ela passou meu dedo em meu pescoço e me fez escrever isso no chão. De que lado ela está? Um dia tenta me matar e no outro me dá um nova pista. Será uma armadilha?

- Volte. Ao. Início - Digo absorvendo as palavras.

Início de quê? Não tenho ideia. Preciso de mais do que uma frase. Voltar...

- Ao início! - Grito.

A casa de Matt! Mas já está amanhecendo, não posso ir, se a Sra. Thompson me flagrou durante a noite, imagine durante o dia. Preciso manter a calma, tem algo lá, tem algo de Matt para mim. Olho pela janela e avisto os primeiros raios de sol entrarem em casa. São seis horas da manhã, vou tomar um banho, limpar a bagunça e tomar meu shake, ele me ajuda a pensar.

*****

- Bom dia Sr. Luke.

- A senhorita está bem? - Ele olha para meus ferimentos: queimaduras, cortes, arranhões.

- Sim, estou, foi uma manhã difícil - Sorrio disfarçando meu incômodo e me lembrando de todos os cacos de vidro que tive que limpar. Bom, posso dizer que a casa está mais ventilada do que nunca agora que não tem mais vidros nas janelas.

- Entendo - Ele continua me olhando embasbacado e acho graça.

- O de sempre por favor.

- Claro! - Ele desperta. - Manda ver aí! - Ele dá um tapa na copa para acordar o cozinheiro - Um shake de morango para a minha melhor cliente, aquela que alegra as minhas manhãs. - Ele olha para mim - Conseguiu dormir?

- Ahnn, não, mas estou bem. - Minto descaradamente.

- Cuidado moça, o coma do sono é pior do que qualquer outro estado de vegetação. - Ele me aponta seu dedo em advertência e em seguida me serve o shake. Sempre ágeis!

- Ok, vou me lembrar disso. - Pisco para ele e recebo um sorriso assustador de volta, mas ainda assim, aconchegante.

- E então?

- Delicioso como sempre Sr. Luke, obrigada.

- Eu que agradeço - Ele sorri - Seu namoradinho já deu o ar da graça?

- Ahnn... - Suspiro - Ainda não, mas tenho uma nova pista - Estou animada.

- Bom para você - Ele diz - Não tem medo do que possa encontrar?

- Não exatamente - Busco as palavras certas - Quer dizer, tenho encontrado muita coisa, uma a mais, uma a menos, não vai me surpreender tanto assim - Dou uma risadinha boba.

- Cuidado. - Sinto frieza em sua voz - Não é fácil encontrar o que se procura e ainda mais difícil estar preparado para o que se encontra. - Isso foi profundo.

*****

Uma da tarde. O que tem para hoje? Comida congelada. Estrogonofe de frango, batata palha e arroz, adoro essas caixas mágicas. Como rapidamente, preciso pensar em como entrar no quarto de Matt novamente.

Jogo o prato na pia, ainda bem que não quebrou, decido ir para meu quarto, subo as escadas e ao chegar no último degrau ouço um som estranho, vem do andar de baixo, desço lentamente com cautela cada degrau e quando meus olhos alcançam a sala, avisto Andy próxima à mesinha de centro. Já não sei mais em quem confiar, não sei se ela quer que encontre Matt ou quer que eu me afaste dele. Me aproximo de sua imagem desconfiada, seu vestido está limpo, sem sangue algum. Me ajoelho frente à ela e nossos olhares ficam na mesma altura.

- Olá Andy - Acalme seu coração Ana.

Ela me estende sua pequena mão e quando a seguro tudo gira e começa evaporar em uma fumaça negra, sinto muito frio. Estamos em um gramado, não tenho certeza se já o vi anteriormente, vejo muitas crianças brincando, ficamos de pé, com as mãos dadas e vemos uma outra Andy, sentada no gramado apenas observando tudo. Nos aproximamos dela, sua pele é rosada, diferente da pele da Andy que segura minhas mãos, ela arranca folhas do chão enquanto um homem desconhecido se aproxima de nós.

- Olá menininha, como você se chama? - Sua voz é gélida, não tenho certeza se o conheço, mas não confio nele.

- Andy - Sua voz é doce e ela sorri.

- Andy? É um nome muito bonito Andy. - Ele parece saborear o nome dela e senta-se ao seu lado na grama.

Ele a olha de uma forma estranha, não parece um pedófilo, mas não parece querer seu bem, quem é ele? Aparenta ter uns quarenta anos, branco, cabelos grisalhos, olhos esverdeados, alto e esguio. 

- Onde estão seus pais? - Ele pergunta, acho que não me vê.

- Ali - Ela aponta para um belo casal que conversa com uma vizinha.

- E quantos anos você tem?

- Onze - Ela fala sutilmente, parece distraída ou triste.

- Por que tão triste Andy? - Ele está procurando algo.

- Por nada.

- Tem certeza? Por que não está brincando com as outras crianças?

- Estou cansada delas - Responde sem titubear.

- Olha! - Ele solta uma gargalhada maléfica. - Por que diz isso?

- Eu não sou mais uma criança e ninguém enxerga isso. Nem meu irmão.

- E onde está seu irmão?

- Universidade, ele me deixou aqui com esses dois velhos. - Ela guarda muito rancor.

- Velhos? Não diga isso mocinha, aposto que seu pai deve ser o cara mais legal do mundo.

- Ele era, quando nos levava para caçar, agora que meu irmão foi para a universidade, ele esqueceu que tem uma filha.

- Caçador? - Ele fita os pais dela - Que interessante. Aposto que ele tem muitas armas. - Ele a encara esperando uma resposta.

- E tem - Seu rosto se enche de luz - Se quiser, posso mostrar.

- Eu adoraria! - Ele está satisfeito.

- Então venha, vou te mostrar onde meu papai guarda as armas.

Eu reconheço essa fala e meu estômago revira, é ele! O assassino! O amigo de Matt! Sabia que Matt estava na universidade, sabia que sua irmã era ingênua e não o conhecia. Ele sabia o que estava fazendo. Andy lhe mostrou as armas e ele as usou.

- E você? - Ele parece olhar para mim - Acha que não sei o que está fazendo? - Ah Meu Deus, ele está olhando para mim! - Seu pesadelo está só começando! - Olho à minha volta, estamos no escuro e Andy sumiu - Você é uma garota morta sua vadia.

Sua voz ecoa em meus tímpanos, grave e assombrosa, sua aparência muda, se existir um diabo, é este. Não há chifres ou tridentes, apenas um rosto desenhado pelas próprias trevas, com larvas saindo do buraco onde anteriormente haviam olhos, besouros saindo de sua boca, seu corpo em decomposição, um cheiro forte de morte e ódio. Ele levanta uma mão que mais parece uma garra e a desce sobre meu braço causando um corte profundo e jamais pensei que temeria a alguém mais do que à velha amaldiçoada. Ele é o mal em pessoa, as trevas e a deformidade de uma alma podre. 

É ele!

DARKNESS - Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora