MEMÓRIAS

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*Agora*

Tudo está nítido. Estou sentada no sofá a manhã inteira abraçando as próprias pernas. É por isso que Trevor está atrás de mim, é por isso que ele quer a minha alma, nós fizemos um pacto, uma amizade macabra, como pude confiar nele?
Quando isso exatamente aconteceu? Eu não consigo me lembrar de nada de antes ou depois dessa memória. Só tenho certeza de que eu os matei. Eu sou culpada. Uma assassina.
Por eu fiz isso?
Choro desconsolada, estou sem chão, perdida. Eu fiz isso? Ou Trevor está tentando me confundir?

- Por favor Deus, me ajude - Imploro olhando para o teto.

Eu não tenho mais ninguém nesse mundo, como buscar a verdade? Por onde começar?
Decido fazer o que faço de melhor. E saio de casa com um destino em frente.

*****

- E essa carinha de choro moça? - Apesar de respirar fundo e enxugar as lágrimas, meu rosto não mente.

- Problemas - Respondo.

- Um shake para desanuviar a mente? - Ele pergunta.

- Por favor - Digo sem prestar atenção e faço desenhos imaginários com o indicador no balcão. - Sr. Luke? - Ele está de costas para mim, pedindo o meu shake.

- Sim? - Pergunta lentamente com uma voz meio assustadora se virando para mim já com meu shake em mãos. Como ele faz isso?

- Obrigada... - Digo pegando o shake e continuo - Talvez eu nunca tenha dito isso, mas... - Dou um gole nessa bebida extremamente gelada - Desde que acordei do coma, o senhor tem sido o meu único amigo e... - Abaixo a cabeça meio envergonhada - Eu só tenho o senhor para contar.

- Então conte moça. - Diz se apoiando no balcão me encarando e toca meu queixo me forçando a levantar a cabeça - Eu serei o amigo que você precisar.

Ele sorri, seu sorriso assustador, mas... Tudo gira e é como se eu já tivesse ouvido isso antes. Estou atônita, confusa e meu coração dispara.

- O que foi moça? Você está bem? - Ele parece preocupado, mas não consigo enxergá-lo direito, tudo está embaçado.

O que está acontecendo? Sinto como se fosse desmaiar. Isso... Essas palavras... Eu sei o que é déjà vu, mas não acredito que a sensação seja tão desconfortável como a que estou sentindo nesse momento.

- Moça? - Ouço o estalar de dedos do Sr. Luke e isso parece me fazer voltar para o presente. - Você está bem? - O enxergo melhor agora, mas minha cabeça parece pesada.

- Hum... Estou - Digo colocando a mão na cabeça tentando segurá-la para tudo parar de girar.

- Acho melhor você descansar.

- Eu estou bem - Respiro fundo - É só... - O olho com atenção - Tive a sensação de que o senhor já me disse isso antes. - Sorrio sem graça.

- Mas eu disse! - Diz limpando uma jarra de vidro.

Me assusto com a resposta. Ele disse? Quando? É uma memória? Já nos conhecíamos? O que está havendo?

- Disse? - Estou tão perturbada.

- Sim! - Ele sorri - Há alguns anos quando nos conhecemos. Antes do seu... - Ele gesticula como se estivesse desenhando a minha cabeça na minha frente - Sono de anos.

- O que? - Estou desesperada - O senhor me conhece? Quando? Como? Onde? Por que não disse nada?

- Como assim moça? - Ele parece confuso - Depois que você acordou veio à minha lanchonete como de costume e bebeu o de  sempre.

Sim! Eu estava procurando um lugar para comer algo. O médico disse para eu caminhar pelo bairro, reconhecer lugares que talvez poderiam me trazer alguma memória mais próxima ao acidente. Eu entrei aqui e me lembro como se fosse hoje:

"- Bom dia moça bonita! - Disse ele com alegria. - Como você está?

- Bem eu acho - Estava desolada pela perda dos meus pais.

- Eu entendo - Ele disse consternado - Que tal aquela bebida gelada?

- Pode ser - Disse dando de ombros".

Eu respondi pensando que ele estava me recomendando a bebida, jamais pensei que era o "de sempre". Pelo visto, eu esqueci mais do que deveria. Como pude me esquecer do Sr. Luke?

- Sr. Luke me desculpe... - Digo me levantando - Mas tenho que ir.

- Moça! - Ouço sua voz, mas já estou fechando a porta atrás de mim, tenho muito em que pensar.

Meu Deus! Do que mais eu me esqueci? O que aconteceu? Isso é normal? Devo procurar o médico e informar a ele que esqueci mais do que deveria?
Começo a caminhar - preciso respirar - refletindo sobre toda a minha vida, sobre as possíveis memórias que perdi. Agora estou mais perdida do que nunca.
Chego ao lago Oneida e me sento no banco da praça, o banco onde vi a garota zumbi, quando ela me entregou aquele bilhete.

- Garota morta - Digo em voz alta.

Eu sou uma garota morta em vida. Não tenho familiares, amigos - exceto o Sr. Luke -, namorado - Matt ainda está desaparecido e nem sei o que éramos - e memórias, lembranças, um passado...
Começo a cogitar a ideia de que a memória colocada por Trevor em minha mente não é real, eu sei que ele pode fazer isso, ele pode fazer muitas coisas pelo visto, desde o domínio de almas até o controle da mente.

Abaixo minha cabeça um instante para tomar fôlego, estou tão aflita, gostaria que Matt estivesse aqui.

- Você entende tudo, mas nem tudo entende certo...

Ouço a voz doce em uma crescente até o fim da frase e me levanto para procurar sua dona, eu já sei quem é, apenas a procuro.
E encontro-a, sentada ao meu lado, em seu belo vestido imaculado.

- O que eu entendi errado Andy? - Pergunto como se a cena fosse normal. Eu e a alma de uma garotinha em coma sentadas em um banco de praça batendo papo.

- O início... - Por um instante Andy parece uma criança normal, conversando com uma pessoa normal. - Nada é sobre ele - Quem? - É tudo sobre você.

- O que? - Pergunto confusa.

Ela me estende sua pequena mão. Um bilhete. Eu o pego. Sua mão é fria.

- Seu tempo está se esgotando garota morta.

- Como? - Ela conseguiu me assustar.

- Ele vai tirar tudo o que você ama e tem. Ele tirou tudo o que você amava e tinha. Ele tira tudo o que você ama e tem.

O que ela quer dizer com isso?
Ele tirou, ele tira ou vai tirar?
Trevor?
Quero mantê-la sob meu olhar, mas preciso ler o bilhete. Abro-o depressa.

"Volte ao início".

"- Trevas, trevas, quem lhe salvará?".

Ouço sua voz cantando como um eco distante e quando volto a encará-la, Andy se foi. Estou sozinha novamente e com aquela frase. A frase que Claire Sutta escreveu com o próprio sangue durante a terapia no hospital. A frase que me guiou à casa de Matt. Eu pensei que era sobre ele, sobre Andy, sobre a garota zumbi e a velha amaldiçoada, mas não! É tudo sobre mim! Tudo é por minha causa! A lembrança dos garotos mortos me vem à cabeça. Meu pacto com Trevor, o buscador de almas. Agora tudo faz sentido!
Ele tirou, está tirando e vai tirar tudo o que amo, pois eu devo pagar pelas almas, pelo nosso pacto. Tudo está relacionado à mim. E talvez apenas eu possa fazer Matt retornar.
Trevor ainda tem o que tirar de mim e preciso impedir que isso aconteça.

Devo voltar ao meu início.

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