TREVAS

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Abro meus olhos mais uma vez, não há nada de novo. Já é manhã e nem parece que eu dormi. A luz vai embora tão rápido, mas a noite dura quase uma eternidade. Não lembro da última vez em que dormi ou sonhei, algo bom eu digo. Sonhos ruins tenho sempre, às vezes parecem tão reais. Sonho muito com o acidente, consigo sentir o cheiro da fumaça e a dor, aquela dor: infinita, persistente e terrível.

Deveria arrumar um emprego, ocupar a mente, o dinheiro não vai durar para sempre afinal, nem sei como o tenho ainda. 

Minha casa parece igual, ainda não entendo por que durmo nesse quarto, posso escolher onde quero dormir, menos no quarto deles, não entro lá. Parei de entrar, é doloroso de mais. Gostaria de descer as escadas e ela estar lá preparando meu café. Não que ela preparasse antes, eu já estava bem grandinha para prepará-lo sozinha, mas agora eu sinto falta disso. Ele também não está mais lá, sentado na poltrona com sua xícara favorita e seu jornal. Era tudo tão perfeito. Queria ter ido com eles. Se existe castigo, esse é o meu. Minha luz se foi e eu fiquei nas trevas.

As trevas, parece tão dramático pensar nisso.

- Trevas. - Digo em voz alta.

Me levanto e vou tomar um banho quente. A água do chuveiro é maravilhosa. Ela bem que podia apagar memórias e sonhos ruins. Estou tão cansada disso, poderia dormir aqui, agora. Fecho meus olhos debaixo da água e vejo uma garota, se parece comigo, ela sorri e seus olhos começam a sangrar.

Abro meus olhos rapidamente. Quando isso vai parar? Eu preciso dormir, mas por enquanto parece impossível.

Me olho no espelho. 

- Ana, você está horrível!

Algo gelado, isso! Preciso de um Milk Shake terrivelmente exagerado e calórico para repor minhas energias. O açúcar tem esse poder em mim.

*****

Saio distraída.  Viro à direita, depois à esquerda, depois à direita, atravesso a rua, tem uma lanchonete lá. Sempre está vazia, mas de uns tempos para cá tenho percebido que o bairro está. As crianças cresceram eu acho e encontro alguns vizinhos de vez em quando.

- Bom dia moça bonita, o que vai querer hoje? 

A cara do Sr. Luke me assusta, ele sempre me pareceu sombrio com aquela barba gigante que termina em seu peito, sua pele morena jambo e seus olhos escuros e graúdos. Uma vez me disseram que ele era um morto-vivo e eu acreditei, sei que só queriam me assustar porque sempre fui muito medrosa. Mas, não lembro ao certo de onde é essa memória. Acho que o trauma fez isso comigo.

- O de sempre Sr. Luke.

- Tudo bem! - Ele se vira para a copa - Ei José, um Shake de morango. - Dois minutos depois... Como eles fazem isso? - Aqui está linda.

- Obrigada.

Bebo e sinto meu cérebro congelar. Mas é delicioso. Pela eficiência deles esse lugar deveria estar lotado. O sabor desse Shake é único, deveria haver uma fila aqui. É simplesmente o melhor do bairro.

Saio da lanchonete me sentindo satisfeita com apenas um Shake e decido caminhar pelo bairro. Quero aproveitar e absorver cada raio de luz, mesmo que o sol aqui não seja exatamente iluminador. 

A luz.

Ela nunca foi tão importante como ultimamente tem sido para mim.

Quem dera se na época em que eu me trancava no quarto para fugir da minha realidade - que hoje vejo, era maravilhosa - eu soubesse o quanto a luz era importante. Não teria me trancafiado no escuro, fingindo dormir para meus pais não me incomodarem com sua chatice. Eu realmente era complicada, não os merecia, hoje vejo isso. Ele mereciam uma filha melhor, sem loucura ou drogas e bebidas. Sinto falta deles.

Pego um cigarro em meu bolso, o ascendo e trago distraída. É aliviador. Caminho à esmo, espero não me perder de novo. Às vezes parece um universo paralelo, quando acho que estou na rua de trás, sinto como se estivesse no Japão, fico perdida, sem rumo e no segundo seguinte, estou na rua de casa. Sei lá, acho que a pancada ainda me afeta. O médico disse que a pancada foi forte, fraturei o crânio. É incrível como minha fala voltou a normal. Gostaria que tudo tivesse voltado também.

Apenas queria minha vida de volta. Meus pais, amigos. Amigos... Por onde andam? Como saber? Todos seguiram suas vidas, cansaram de me esperar, afinal não podiam me esperar para sempre. Ouvi dizer que Angélica foi aceita em Harvard e Michael estava em uma banda de rock, fazendo muitos shows em Las Vegas. Quem poderia imaginar que se passariam três anos? Eu os perdi. Quando voltei, ninguém mais estava aqui. Ninguém mais era conhecido. Nem eu. Principalmente eu.

Trago profundamente meu cigarro, isso me tranquiliza. Se minha mãe estivesse aqui agora diria "Ana! Isso mata menina!". Ela era maravilhosa. Se eu soubesse o que viria depois disso, teria absorvido cada palavra e conselho seus. Ela jamais soube o quanto eu a amava. Jamais saberá. Quem sabe um dia, quando eu morrer. Mas não acredito muito nessas coisas, vida após a morte. Só que... Eu gostaria sim... De partir, partir agora, encontrá-los, ser feliz com eles, todos eles, dizer que os amo muito e que nada vai interferir e estragar nossas vidas novamente.

A vida parece injusta ou talvez eu merecesse isso, talvez por não tê-los valorizado antes. Agora eu estou sozinha, apenas com minhas lembranças, as boas e as ruins. E os sonhos. Os malditos sonhos que tiram minha paz. Se ao menos eu pudesse fechar meus olhos sem ver tantas coisas horríveis. O médico disse que é um trauma, passei por muita coisa, mas ele não entende, não sabe como é fechar seus olhos para dormir e não ter paz, acordar suada e ofegante por mais um pesadelo terrível. Pessoas desconhecidas, minha família e amigos. Sangue, morte, dor e escuridão. E lá estão elas, as trevas novamente. Parecem me perseguir. Mais uma vez me pergunto se é um castigo pela minha rebeldia adolescente ou por uma vida passada. Eu sei, não acredito nisso, mas também não brinco com essas coisas. Ninguém que se foi voltou para me dizer "Ana, tome cuidado ou irá pagar", logo, melhor eu fazer o certo agora, prefiro não duvidar.

Trago meu cigarro mais uma vez e quase o engulo por causa do idiota que esbarra em mim.

- Está cego garoto? - Grito irritada.

- Ahn... Desculpe foi sem querer.

Sua voz é doce, seu cheiro maravilhoso e quer saber? Nem foi um impacto tão grande, já até esqueci que ele é desajeitado. Fico ali admirada com seus olhos azuis que parecem enxergar minha alma. Meus Deus! Onde você esteve todo esse tempo garoto?

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