Capítulo X

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        Dispensei os treinos da manhã, a poeira precisava baixar, meu ouvido precisava parar de zunir. Eu tinha de tomar um banho bem gelado para aliviar os nervos.
        Cheguei em meu quarto e fui direto para o chuveiro. O choque térmico remoeu minhas lembranças.

        2103. A época era de fome. Quando a população chegou a 11 bilhões, alimentar todos tornou-se impossível. A agricultura diminuiu, os animais que iriam para a indústria alimentícia começaram a morrer e nenhum humano conseguia entender o porquê. Nós já tínhamos entendido tudo.
        A Mãe Terra estava morrendo.
        Em 2108, a população caiu para 4 bilhões. Ver crianças morrendo de fome, famílias sendo destruídas e sonhos sendo esquecidos era de partir o coração.
        Quando 2112 chegou, tudo estava pior do que nunca. A humanidade caiu para 1 bilhão, mais um pouco e estaria extinta. A Mãe Terra viraria apenas uma casca do que já fora.
        Foi aí que fizemos um acordo.
        A Mãe Terra deu energia e força para nos criar. Era a hora de retribuir o favor.
Nosso amor pela humanidade e pela Mãe Terra era maior do que nossas próprias vidas. Era maior para a maioria delas.
        Algumas Almas não aceitaram, elas não eram perfeitas. Elas se rebelaram.
        O que era para ser um sacrifício se tornou uma batalha. Raios e fumaça roxa cobriam o chão e o céu escureceu. Uma chuva negra e gelada começou a cair.
        Naquele momento, deusas batalhavam. A esperança da sobrevivência contra a aceitação do apodrecimento. Com isso, depois de tempos, a Mãe Terra resolveu agir.
        Eu me lembro de seus gritos, do pedido por perdão, o som dos passos das que conseguiram fugir. O barulho de seus corações se estilhaçando. Eu me lembro de me perguntar por quê. Suas singularidades levaram-nas para a destruição.
        Após isso, a Mãe Terra abriu uma cratera no chão, borbulhando lava. Eu não conseguia compreender o que acontecia. Centenas de nós foram destruídas de uma hora para a outra. Por que as outras achavam isso certo? A Mãe Terra nos achava tão descartáveis assim?
        Várias de nós começaram a andar em direção à profunda cratera. Seus olhos estavam completamente cinzas e seus cabelos, molhados por causa da chuva. Consegui ouví-las murmurando antigas cantigas, as músicas que cantavam para nós quando éramos deusas, quando os humanos nos ofereciam sacrifícios.
        Agora, nós éramos os sacrifícios. E a deusa era Ela.

        Desliguei o chuveiro e pus minha roupa. Joguei-me na cama como se não pesasse nada.
        Na época, fiquei dias e dias remoendo seus gritos e as lembranças que vivi com as Almas que pularam.
        A agricultura começou a crescer novamente, e o planeta não cheirava mais a morte e sofrimento. A vida na Terra começou a renascer e os humanos acreditaram que um milagre tinha os salvado. Eles não sabiam que quem fez o milagre fomos nós.
        A Sacrificação deixou-me uma cicatriz, mas me ensinou a ficar quieta.
        Eu sou só mais uma imperfeita que ficou calada durante a carnificina. 

   

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