Capítulo XIX

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          Algo dentro de mim se quebra, algo remendado e consertado muitas e muitas vezes. Algo com a fragilidade de uma pena, mas com a força de um touro. Algo quebrado.
          Algo dentro de mim se racha, algo lembrado e esquecido inúmeras vezes. Alto tão simples, tão necessário para ser, mas ao mesmo tempo tão necessário e às vezes tão inútil. Algo rachado.
          Algo dentro de mim chora. Algo tão brilhante e tão fácil de ser alcançado e perdido. Algo chorado.
          Algo dentro de mim grita. Grita tão alto, tão fortemente, capaz de me enlouquecer. Esse algo sobe pela minha garganta arranhando minhas veias na tentativa de sair. Mas não consegue.
          Respiro fundo, os pensamentos a mil. Tudo está confuso, tudo parece perdido. Olho para Lissa e começo a caminhar rapidamente. Para onde?

 —Ei! — grita Luar, agarrando meu braço — O que houve?

  — Os Solines. Eles estão vindo. — cuspo as palavras sem nem sequer pensar.
          Vendo meu desespero e agonia, ela me abraça. Por um momento, sinto Lune. Não, não é a Lune. É a Luar. A minha irmã Luar.
          A coragem quebrada, as lembranças rachadas, a felicidade chorada e o desespero gritado entram na mais perfeita harmonia. Porque tudo que está ali existe, todos são sintomas da Alma imperfeita.
          Desvencilho-me do abraço.
  — Tenho que avisar a todos. — seguro suas mãos.
  — Vou com você.

          "Peguem suas armaduras e armas, deixem tudo pronto. Sairemos pela manhã." Minha voz ressoa repetidamente pelo campo. Olho para Luar.
 — Cuide de tudo. Volto em algumas horas.
 — Aonde vai?
 — Preciso de um conselho.
          A abraço e levanto voo.

          Pouso perto de uma cabana e me aproximo devagar. Bato na porta, já entreaberta.
 — Cigana? — chamo.
 — Entre.
          Engolindo em seco, obedeço.
 — Olá Nix. — fala ela, olhando para frente — Quanto tempo.
 — Pois é, né. — respondo, nervosa — Tempo demais.
          Olho para a Alma do Futuro. Sendo a única que restou de sua linhagem, Cigana carrega sozinha o fardo de ler o futuro. Apesar de estar com a aparência jovem, alguns fios de cabelo branco estão muito visíveis, além das olheiras. Porém seus olhos roxos são muito vivos, jovens e animados, como se ainda tivessem muito para ver.
 — Cigana, eu... Preciso de um conselho.
Ela ri.
 — Eu sei. — fala, estendendo a mão para uma cadeira ao outro lado da mesa.
          À minha frente, estão cartas de tarô, uma bola de cristal e um caderno repleto de anotações.
 — Preciso saber o que vai acontecer.
A mulher me encara.
 — Eu não tenho como te dizer isso, Nix, e você sabe disso. O futuro é como um rio, com seus afluentes e subafluentes, podendo acabar em lagos ou até em cachoeiras. Esse rio move pedras e galhos, sendo barrado por rochas e areia.
          Olho para o chão.
 — Então pelo menos me ajude.
          Ela concorda e, com um sorriso sereno, pega as cartas. O ar no local esfria e uma fumaça roxa cobre meus pés.
 — Nix, nada aqui é certo, ok? Não deixe de fazer o que você acha certo por medo das cartas.
Afirmo com a cabeça.
          Enquanto embaralha, seus olhos ficam completamente brancos, fazendo-me suar frio.
Cigana vai separando as cartas e, quando as vira, sinto um choque.
          Ela toca na primeira dupla de cartas, a árvore e o chicote.
 — Eu te vejo no campo de batalha correndo, machucada e dolorida, mas nunca parada. Nunca te falta esperança.
          Assim, ela passa para a próxima dupla, a lua e a raposa.
 — Você, perdida em pensamentos, mata um inocente. Foi vítima de sua atenção enevoada, a falta de foco. Você perdeu a honra, é uma Alma quebrada.
          Caixão e foice.
 — Vejo mudanças, sangue derramado. Fogo. Gelo. Dor. Morte.
          Torre e chave.
 — Eu vejo uma espada, vejo um clarão, e a escuridão. Eu vejo a Lune.
          Ao som do nome de minha irmã, olho para a Alma do Futuro.
 — Lune?
 — Uma difícil decisão.
          Criança e a estrela.
 — Você. Você sente e vê tudo. Sentidos aguçados, mente no passado. Mãe Terra.
          Caminho e cruz.
  — Eu vejo seu destino, o seu futuro. Ele é...
          Cigana pisca os olhos três vezes e seus olhos voltam ao normal.
 — Não consigo ver.
          Meu sangue congela, sinto um calafrio na espinha.
 — O que Lune tem a ver com tudo isso?
 — Eu não sei, Nix. O futuro é uma incógnita, um eterno ponto de interrogação. Eu não tenho todas as respostas.
          Ela puxa a bola de cristal para si e põe as mãos em cima, quase encostando. Fecha os olhos.
 — Solines e Lunines se encaram em território de guerra, o sol e a lua numa eterna batalha pela sobrevivência. Suas flâmulas balançam com o vento, a falta de piedade é muito aparente. Balas e flechas são lançadas aos ares, espadas colidem em terra. O poder, a magia, a luz.
          A bola de cristal fica escura e Cigana abre os olhos, triste.
 — O futuro é nebuloso e escuro demais. Não consigo ver através da névoa.
          Suspiro e me levanto, dando-lhe um abraço.
 — Obrigada, Cigana. Se proteja.
          Ela me olha nos olhos.
 — Eu vou.
          Quando abro a porta, diz:
 — Ah, e Nix... Boa sorte.

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