Capítulo XLII

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        Minhas mãos afundam na terra e a sujeira penetra em minhas unhas conforme tento subir o morro. 

        A última Alma restante no campo de batalha.

        Do topo do monte observo o cadáver do campo de batalha. Sem nenhuma magia. Nenhum vestígio da magia. A mágica é um cadáver assim como a guerra.

 — Como você espera que eu continue com isso?— pergunto. A Mãe Terra está atrás de mim— Como você espera que eu continue amando, cuidando e protegendo essa raça miserável? Olhe isso, Mãe Terra. Olhe isso. Como você consegue amá-los? Eu sou... Eu sou a última Alma que restante no campo de batalha. Como você ama uma espécie que nos destrói? — continuo com a voz sumida— Somos tão descartáveis assim? 

 — Ah, Nix...

 — Quando foi que a humanidade tornou-se tão gananciosa...? Tão vil a ponto de matar o que um dia foram seus deuses?  

 — Minha menina, olhe para mim. A humanidade sempre foi e sempre será assim, você mais que todos deveria saber disso. Meus filhos estão fadados à morte e à destruição e vocês foram feitas para cuidar e proteger uma raça que está... eternamente aprendendo a viver. Não posso te obrigar a amá-los, Nix, mas você pode odiá-los? Você consegue? — a deusa ri fraco— Eu não consigo. 

        A Grande Mãe me dá um beijo na testa e afunda novamente no solo. 


        Dois dias. Se passaram dois dias. 

        Apoio meus antebraços na mesa do bar abaixando a cabeça. O copo da bebida forte está em minha frente e é o quarto só essa manhã. O líquido quente desce pela minha garganta e peço mais um na esperança de que o álcool me livre dos problemas. Mais um. Que dor de cabeça. 

 — Oi! Chega, não é? — pergunta alguém. Me viro prestes a xingar a pessoa, mas algo me impede. Uma Alma. 

 — Quem é você? 

        A criança se senta de frente para mim, mas não olha em meus olhos. Ela se segura no banco e se balança para frente e para trás.

 — Meu nome é Káira. Eu sou uma Alma do Tempo.

        Quase caio para trás e ponho a mão na cabeça. Só pode ser efeito do álcool.

 — Acho que bebi demais. Alma do Tempo. Vocês estão extintas. 

        A menina solta uma risada um tanto quanto irritante.

 — Tudo recomeçou, tudo. A vida, a paz, as Almas do Tempo. A Mãe Terra nos deu mais uma chance, aí eu surgi. A primeira Alma do Tempo. 

        Paro para observá-la, acho que tentando entender suas palavras. Sua pele é negra com uns brilhos dourados junto com um relógio de corrente preso ao peito. Seus cabelos são crespos, soltos e lindos como os minutos, além de uma tatuagem de ampulheta no braço esquerdo. Quando chego em seu rosto e vejo que a Alma não me olha nos olhos, me lembro. Cega. Totalmente cega. Isso não é novidade, aliás. Ela sabe de todo o passado, vê todo o presente e sente tudo o que vai acontecer no futuro, para que enxergar? 

        Foi esse dom que levou-as à destruição. 

 — Vai começar tudo de novo...— o álcool derruba as barreiras da minha grosseria. 

 — Não, não vai. Eu tenho que ter muita cautela. Sou vigiada pela Mamãe todo o tempo para não cometer os mesmo erros de minhas antigas irmãs. — Káira foca seus olhos em mim — Nix, eu sei que está farta e destruída com a guerra, mas acho que tem alguém que precisa de você agora.— seguro com força o copo em minha frente pensando— Por favor não vá bêbada. Ela não vai gostar.

        Dou um sorriso para a pequena criança e largo a bebida no balcão.


        Tudo é caos. 

        A ampulheta vira e desvira, a areia corre e volta. O tempo é algo controlado e contido nas mãos de poucas. 

        É a mais pura confusão. As Almas do Tempo fazem, refazem e desfazem tudo que não acham certo. Muitas vezes eu durmo e acordo desnorteada com os anos que se passaram em minutos, ou olho para o  céu e vejo que voltei para tempos atrás. 

        Elas voltam o tempo para continuarem vivas.

        Elas voltam o tempo para refazerem fatos. 

       Elas voltam o tempo para controlá-lo. 

       As deusas não podem ter o relógio, a ampulheta não pode ser uma posse. 

        Então o tempo de vinga. Ele luta para ser livre. 

        O tempo caiu sobre suas Almas, levando-as à insanidade, e foi aí que tudo ficou pior. Tudo as deixavam loucas. O dia as deixavam loucas, a noite as deixava loucas. A voz da Mãe Terra as incomodava.

        O passar do tempo as faziam cair. 

        A Grande Mãe ficou farta disso tudo. Ela destruiu todas as Almas do Tempo, deu um destino cruel para suas filhas que foram ditas como perfeitas. Com isso, o tempo relaxou e voltou a correr novamente. 

        Foi a primeira vertente das Almas extinta pela Mãe Terra.


        Acordo com ressaca, mas ignoro enquanto tomo uma xícara de café quente no que era meu antigo quarto no batalhão. 

        Saio batendo a porta.



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