Antes de Dantálion, havia Iago.
Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...
Eu sinto que não tenho muito mais tempo, e, quando a hora chegar, quero estar pronto.
O tempo sempre foi meu inimigo. Às vezes ele é curto demais, e às vezes é longo demais. Mas ele nunca é da medida certa, nunca é suficiente. O tempo que passei com minha família não foi o bastante, e o tempo que passei sem eles tem sido longo demais, mais longo do que qualquer século ou milênio. A contradição é difícil até mesmo para mim. Como podem aqueles dias, por exemplo, terem sido tão curtos, e, ainda assim, uns dos mais intermináveis de minha vida?
São algumas poucas lembranças mais marcantes que tenho dela. Seus cabelos compridos, tão lisos e escuros quanto os meus, e seus olhos amendoados...
- Mamãe, por que meus olhos são estranhos?
Seu rosto nublado buscou o meu. Ela sempre me causava a impressão de estar presente e ausente. Seu espírito queria me dar toda a atenção, eu sei, mas seu olhar denunciava o pensamento distante. Meu pai dizia que ela era atraída pelo vento. Eu não entendia exatamente o que ele queria dizer com aquilo. Hoje entendo.
- Quem te disse que você tem olhos estranhos?
- Alberto.
Ela franziu as sobrancelhas.
- Aquele garoto metido dos mineradores?
Assenti, sem conseguir olhá-la nos olhos, que eram tão esquisitos quanto os meus, e pareciam capazes de perfurar o aço.
- Por que ele disse isso?
Eu segurava as lágrimas, ainda desviando o rosto.
- O que foi? O leão comeu sua língua de novo?
Um dos defeitos que consigo atribuir à minha mãe era sua mania de me atormentar com o leão. Eu nunca tinha visto um de verdade, logicamente, mas ela tinha me mostrado uma figura num livro. Aquele animal me apavorava, com suas garras enormes e seu pelo dourado. Lembro-me de ter pesadelos com leões constantemente, em que eles saltavam sobre mim e me matavam. Eu não sabia como eles se moviam, mas imaginava que se movessem como os gatos, o que era ainda mais assustador. Um leão parecia um gato gigante.
Gatos não são permitidos oficialmente na cidade, mas é impossível mantê-los longe, principalmente por causa dos ratos. Eu sempre os via perto de nossa antiga casa, escalando árvores e telhados. Quando era bem pequeno, cheguei a tocar em um. Brinquei com seu pelo extremamente macio durante um minuto, antes de ele se virar repentinamente e cravar as unhas em meu pescoço. Tenho a marca até hoje, mas é muito difícil de ver. Perto das outras cicatrizes, a do gato é consideravelmente insignificante.
Acho que desde cedo eu estava condenado a ter o mundo todo tentando arrancar meu pescoço.
- Vamos, Iago, conte logo o que aconteceu! Como é que eu posso te ajudar se você não me disser tudo?
Eu reprimi as lágrimas o máximo que pude.
- Ele disse que meus olhos são de gente traiçoeira, e que só pessoas com olhos claros podem ser da alta casta. Ele disse que somos pobres porque meus olhos são pretos.
Minha mãe riu, mas eu sabia identificar quando ela estava rindo apenas para disfarçar o nervosismo.
- E desde quando o grupo dos mineradores é da alta casta?! Esse garoto vai passar a vida toda enfiado em buracos, com o rosto cheio de fuligem. Nosso grupo é muito superior ao desse idiota.
Se tinha uma coisa que me fazia sentir feliz, era quando minha mãe xingava alguém, principalmente se fosse alguém tão idiota quanto Alberto. Os poucos anos de convivência que tive com ela me renderam o mesmo hábito.
Dessa vez, porém, ela percebeu que as palavras não haviam surtido efeito nenhum em me animar.
- Você por acaso quer ser da alta casta, Iago?
Ela se ajoelhou ao meu lado, me envolvendo com os braços, duas rochas em seu rosto.
- Você quer ir morar no Palácio e nunca mais ver sua mãe e seu pai? É isso que quer? Morar lá com eles, e nunca mais falar comigo?
Outro defeito de minha mãe era sua capacidade de triturar meu coração com suas palavras.
A maioria das mães sabe como agradar os filhos: se eles estão tristes, elas fazem qualquer coisa que os distraia. De comida a brinquedos, é fácil fazê-los esquecerem o que os incomoda.
Minha mãe nunca foi assim.
Minha mãe era daquelas que, se me visse triste, iria perfurar meu peito até me tirar do labirinto escuro em que eu estava. Doía bastante. E eu ficava triste com uma frequência considerável, o que não ajudava muito em nossa relação.
Naquele momento não consegui mais aguentar, e chorei como a criança que eu era. Chorei enquanto ela me apertava em seus braços, seu desespero aparente.
- Pessoas de olhos claros são más. – ela me dizia, me espremendo contra seu peito – Se um dia um homem de olhos claros vier até aqui, eu quero que você corra.
Ela me afastou um pouco, procurando meus olhos com os seus. Estava falando sério. Sério, e com medo.
- Você está me entendendo, filho? – agora era ela quem estava chorando - Se eu não estiver aqui, e o homem de olhos claros vier, eu quero que você corra para fora da cidade, sem olhar para trás. Corra, e nunca mais volte. Jure, Iago, jure para mim que você vai correr!
Eu jurei.
E se tivesse cumprido meu juramento, hoje minha vida não seria a merda que é.
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