Amargo

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Montamos sobre a areia a barraca que Laura havia trazido consigo. Era uma dessas grandes, com espaço para várias pessoas, e algumas aberturas estrategicamente localizadas, do exato tamanho de canos de fuzis. Eu me perguntava por que motivo Laura teria uma barraca como essa guardada em segredo na loja. Eu tinha um palpite, porém, de que não era para acampar nas férias.

Ela escondeu a moto, escondeu a barraca, escondeu seus reais motivos para nos manter por perto. Ela não me enganava. Enquanto ela sorria, estendendo as lonas e encaixando cada suporte com a naturalidade de anos de prática, eu olhava fixamente para seus olhos.

Transparentes apenas na cor. Porque do resto, eram mais obscuros que os meus.

Em poucas horas estávamos estabelecidos. Contávamos com um estoque razoável de água e comida, então não foi preciso nos preocupar com nada além de nossos planos. Resolvemos morar naquela barraca por quanto tempo fosse necessário, até termos acumulado todos os itens de que precisávamos para retornar ao meu inferno pessoal.

A ideia me aterrorizava, e os pesadelos que tinha constantemente cresciam em realidade e violência. Todas as manhãs eu precisava me banhar na água gelada para remover de meu corpo o suor e o pânico.

De olhos fechados, eu estendia as mãos, deixando as ondas escaparem entre meus dedos. Respirava o sal, sentindo o cheiro de minha liberdade, o cheiro de minha vida.

Eu me sentia como uma oferenda prestes a ser levada para o matadouro, como um prisioneiro caminhando para a lâmina.

Por quê?

Por que está me fazendo voltar?

Por que não me deixa ser livre?

Todas as vezes que pensava nisso, o suor recomeçava a descer por minha pele, mesmo estando mergulhado no oceano frio. Meus dentes batiam, não pela temperatura, mas pela incapacidade de deixarem escorrer por eles as palavras que cravavam as garras em minha mente.

Você vai morrer.

Você está caminhando para a morte.

Você vai morrer de uma forma horrível, diante de uma multidão aplaudindo.

Corra enquanto pode, enquanto suas mãos ainda não foram amarradas...

Estar de pé nas águas do mar era a única coisa que me acalmava. As ondas repetiam seu movimento interminável, mais antigo que a humanidade, empurrando meu peito para então me puxarem por trás.

O mar também é indeciso. Nunca sabe o que realmente quer.

Muitas pessoas já deveriam ter se banhado ali como eu. Homens que mais pareciam animais, na época das lanças e pedras. Homens que adoravam o Sol e a Lua, na época das florestas intocáveis. Homens que se achavam mais importantes que todos os outros homens, na época das descobertas. Homens que pensavam por que raios de motivo estavam ali, e não assistindo a um filme em casa, na época da informação...

E agora eu.

Um homem que não chegava a ser um homem, porque ninguém mais sabia o que significava ser homem. Porque depois de passar por tudo isso, de sair das pedras para as naves espaciais, o homem percebeu que era menos importante que as ondas. Que, assim como os grãos de areia, ele era também arrastado para cima e para baixo, e sua tentativa de dominar o mundo era ridícula, porque ele jamais havia sucedido em dominar a si mesmo.

Eu pelo menos sou sincero. Sei que não tenho o controle. Sei que estou perdido.

Eu não era estúpido de achar que seria capaz de dominar alguma coisa. Dominar é para aqueles que são como o oceano: não podem morrer, não importa quanto tentem secá-los. Os Auxiliadores e Sacerdotes são imortais, porque não são nada além de títulos. Eu não sou um título. Eu tenho um nome, um nome mortal. Eu nunca fui como o oceano, eu já havia nascido seco e vazio. Meu sangue só não era pó porque ainda não estava em contato com o ar. Mas ele estaria, eu tinha certeza.

O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora