O céu e o asfalto têm muita coisa em comum.
Quando você está rolando em voltas intermináveis, eles parecem exatamente iguais.
Azul. Preto. Azul. Preto. Azul. Preto...
E depois vermelho.
Não senti muita coisa.
O asfalto estava quente, o que me impedia de ter noção do tamanho do corte que molhava meu rosto de sangue. Meu coração pulsava através dele. Eu sabia que conseguia me mover, mas quis ficar quieto.
A vida é cansativa, e eu já estava cansado demais para me mover.
Apenas fiquei, com o rosto sangrando sobre o asfalto trincado e as lágrimas escorrendo silenciosamente pelo fim da tarde, enquanto minha sanidade vazava de minha cabeça, misturada ao sangue. A dormência chegava a ser prazerosa, me lembrava da sensação daquele intermédio de realidade e sonho que recaía sobre meu corpo quando estava prestes a dormir. Um meio-termo agradável. A morte não é tão ruim, afinal. Como o mundo dos sonhos, a morte nos seduz aos poucos, nos faz querer descansar, nos faz sentir desejo de segui-la através do escuro. Irresistível, se eu pudesse defini-la em uma palavra. A morte é irresistível.
Era assim que eu iria acabar? Estendido no meio da estrada como alguém que estava quase chegando a algum lugar, antes de se perder no caminho? A estrada... Aquele quase. Quase aqui, quase lá. Quase vivo, quase morto. Quase feliz, quase triste. Quase sortudo, quase azarado... Era assim que eu tinha nascido, e era assim que eu iria morrer. No meio da história.
Eu não me importava. Não há forma mais digna ou menos digna de acabar. Eu tinha vislumbrado o futuro, e aquilo me deixou feliz, mesmo que minha felicidade durasse apenas alguns minutos antes que minha consciência me abandonasse de vez. Eu não tinha motivos para me agarrar à existência.
A vida era uma merda. Não a vida, como um todo, mas principalmente a minha vida.
Eu queria fugir, e sabia disso. Eu queria escapar de mim mesmo e esquecer tudo. Era por isso que eu cismava em bater a cabeça no asfalto, porque talvez assim eu esquecesse. Poderia esquecer todos eles. Os nomes. Os rostos. Os acontecimentos... Tudo iria embora com meu sangue. Comigo morreriam os Surdos, a Limpeza, a rebelião, a esperança...
Talvez fosse melhor assim. Talvez fosse melhor para eles que eu nunca mais voltasse e não desencadeasse novamente a série de eventos que traria miséria e sofrimento para uma porção de infelizes que se juntariam a mim em minha marcha fúnebre. Sejam felizes, vocês, com suas ilusões. Sejam felizes acreditando que há uma Voz no céu lhes dizendo o que fazer. Sejam felizes acreditando que há uma recompensa os aguardando depois de uma vida de merda. Devem ser mais felizes que eu, com certeza. Vão morrer satisfeitos e cheios de verdades, enquanto eu morro sozinho com minhas mentiras, velado somente pelo céu e pelo asfalto por quanto tempo meu corpo demorar para esfriar.
O asfalto era minha mãe, e o céu era meu pai. Os dois me envolviam, me empurravam um contra o outro. Era apenas este o amor que o mundo tinha para me dar: o amor de um céu indiferente me comprimindo contra o asfalto quente. Era o abraço do mundo para mim. Era o cuidado que o Universo teria comigo. Era assim que ele me amava, e era assim que eu me sentia amado. Porque o único toque afável que eu teria na vida seria o toque afável da morte.
Por tudo que passei, a morte doeria menos que a vida.
Não é tão ruim assim, acredite.
O asfalto, minha mãe. O céu, meu pai. E quem era eu?
Eu era aquele dente-de-leão que sorria para mim com imbecilidade do outro lado da rodovia.
Uma estúpida flor amarela, que já estava ficando branca.
Amarela como minha covardia. Branca como minha insanidade.
Iago era amarelo. E o outro... O outro era branco.
E aquela maldita flor continuava a me encarar, insistindo em nascer num dos trincos do asfalto.
Por que raios de motivo uma flor resolve nascer num lugar de merda como aquele? Não havia espaço suficiente no mundo? Não havia campos, florestas, montanhas e vales suficientes para que aquela merda daquela semente caísse? Por que logo ali, na beira de um caminho abandonado, no meio do concreto sujo, diante de um garoto suicida que mais uma vez tinha errado o alvo da morte?
Eu devia ter perdido bastante sangue, porque sorri de volta para a flor.
Eu a compreendia, e ela me compreendia.
Não havia também tantos lugares para nascer no mundo, Iago? Não havia tantas eras em que poderia ter nascido? Países melhores, cidades melhores, famílias melhores? De tantos lugares e possibilidades, você foi nascer logo num lar Surdo! Logo num lar condenado ao fracasso desde o começo! Logo no olho do furacão! No epicentro do terremoto! No solo de impacto da bomba atômica! Você tem sorte, garoto, muita sorte!
Uma merda de um dente-de-leão! Entre rosas, orquídeas, girassóis, margaridas e crisântemos, uma merda de um dente-de-leão! Uma planta insignificante, frágil, pequena, que só existe ainda pelo único motivo de se despedaçar completamente e ser capaz de brotar em lugares ridículos como aquela estrada!
Uma erva daninha. Uma maldição, que nasce sem ser solicitada, cresce sem ser desejada, e desaparece sem ser vista. Uma merda de uma flor incômoda e teimosa.
E a flor sorria, simpatizando com meu sangue ressecado.
Ela ficaria feliz de ter meu sangue. Seria o melhor nutriente que já recebeu na vida. Ela esticaria suas raízes minúsculas até mim e o beberia com vontade. Porque a vida é assim: nós morremos, e sobre nossos corpos as plantas fincam raízes. Porque alguém decidiu que plantas são mais importantes que pessoas, e que se dane o corpo de um ser humano! O que ele é, senão um monte de estrume da natureza?! Onde estão seus planos?! Seus sonhos?! Seus ideais?! Sua fé?! Tudo isso se resume a adubo. Carne podre. Lixo.
O mundo não diferencia seres humanos de qualquer outro resto jogado fora. Passamos décadas comendo outros seres vivos até que sejamos mais fracos que eles, e então são eles quem nos comem. E se não há nenhum do lado de fora para nos comer, eles brotam de nossas entranhas, rasgam nossos ventres e crescem às custas de nossas carnes.
Seres humanos não têm coragem de comer outros seres humanos, mas um infeliz de um dente-de-leão me comeria sem hesitar.
Era por isso que ele sorria, aquele desgraçado...
A noite desceu lentamente. A morte não veio com ela, e eu sabia que ninguém viria me salvar.
Bruno não tinha uma moto, e não fazia ideia a qual distância eu estava. Laura permanecia na cidade produtora, que ficava para o outro lado, e nem sabíamos quando voltaria. Eu estava sozinho. Eu, e o dente-de-leão que queria me comer.
Tentei virar a cabeça, ouvindo os estalos da placa de sangue partindo em pedaços. A moto estava a uns dez metros, um pouco retorcida, mas aparentemente inteira. Tomei coragem e passei a mão por meu cabelo. O corte não era tão grande, e já havia estancado. Respirei fundo. Ainda não era tempo.
Fui me levantando aos poucos, sentindo os hematomas e cortes. Nada quebrado, exceto minha sanidade mental.
Sentei sobre o asfalto e me arrastei até o outro lado da rodovia.
Com os dedos sujos de sangue, arranquei o dente-de-leão.
- Infelizmente para você, não vai ser desta vez.
Eu o coloquei entre os lábios e comi.

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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...