O garoto azul

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Não há muito que dizer a respeito dos dias seguintes, nem do ano seguinte.

Anton cumpria uma rotina metódica de aparecer sem aviso, trazendo comida e roupas. Pela aparência, a comida era ótima. A mesma que o próprio Sacerdote comia, segundo ele. Mas o fato é que não me lembro do gosto, não me lembro nem mesmo de ela ter algum gosto. Tudo que eu comia parecia terra em minha boca.

E as roupas? É claro que tive que vesti-las. Eu estava crescendo, e não podia simplesmente andar nu por aí. Não que eu andasse muito. Na verdade, eu passava o dia todo na cama.

Anton sabia disso, e não esperava que eu abrisse a porta. A porta nem mesmo tinha mais uma tranca, e estava pendendo das dobradiças. Eu poderia consertar, meus pais me ensinaram a trabalhar com madeira desde que eu era capaz de segurar algo entre meus dedos, mas não me importava. Se eu consertasse a porta, ela continuaria do mesmo jeito, inútil, incapaz de manter o perigo do lado de fora. Eu poderia fazer uma tranca mais forte, para que Anton não conseguisse entrar. Mas ele encontraria um jeito, tenho certeza. Ele sempre encontraria um jeito de fazer tudo que queria, e então a tranca mais forte seria inútil como a porta era inútil. De que serve uma porta, se meu inimigo não está lá fora? Meu inimigo estava dentro, muito dentro. Meu inimigo estava dentro de mim, e se arrastava por minha mente, me torturando sem trégua. Meu inimigo era eu mesmo, e ele queria me ver morto. Ele me mataria, de fome, de sede, de frio, de solidão. E como meu inimigo era eu mesmo, eu jamais poderia derrotá-lo. Então apenas aguardava, deixava que Anton entrasse e me ferisse mais. Deixava que ele sussurrasse palavras dolorosas em meus ouvidos. Deixava até mesmo que ele tocasse meu corpo. Mais cedo ou mais tarde eu estaria morto. Para que lutar?

Foi assim que, numa tarde insuportavelmente quente, eu fechei meus olhos, certo de que não os abriria outra vez. Meu corpo estava anestesiado. Ficar deitado pelos últimos meses havia me deixado insensível, fazendo todos os meus membros adormecerem numa sensação ao mesmo tempo incômoda e agradável. Era incômoda, porque eu sabia que estava morrendo. E por esse mesmo motivo era agradável.

O sol entrava pela janela e se deitava com força sobre mim. Quando se está doente, você sente o peso do sol. Ele pesa uma tonelada, e todos os lugares em que toca latejam e parecem que vão se dissolver.

Eu mantive os olhos fechados e deixei que o sol fizesse seu trabalho em me torturar pela última vez. Sorri, me despedindo da vida de merda da qual não teria nenhuma saudade.

Mas o sol foi interrompido quando senti uma sombra sobre meu rosto.

Anton.

Estava indo tão bem...

- Você é Iago?

Meus olhos abriram sem minha permissão.

Eu quis perguntar qualquer coisa ao estranho que me cobria com sua sombra, mas minha garganta estava seca demais, então não me dei ao trabalho. Que me importava quem era aquele sujeito e o que fazia em minha casa? Só queria que ele fosse embora e me deixasse morrer em paz.

- Vero me pediu para te procurar.

Graças ao sol, tudo ainda estava pintado em uma cor azul doentia, e o garoto alto ao meu lado parecia ser também azul.

- Sagrada Voz! Você está horrível!

- Obrigado por notar. Agora vá embora.

Não sei se ele chegou a escutar o que eu disse, porque minha voz só saiu realmente na metade da frase, e muito baixa.

- Tome, eu trouxe isto para você.

Havia algo em suas mãos, algo que refletia a luz.

- Venha, eu te ajudo a levantar.

O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora