Sessenta dias depois do meu pequeno "acidente", eu já estava mancando sobre um par de muletas improvisadas. Eram muito desconfortáveis, e eu acabei convencendo alguns membros da medicina a me trazerem meu equipamento para que eu pudesse fazer os devidos ajustes. Além disso, eu também já podia me equilibrar sobre a areia movediça de todas as leis da cidade. De vez em quando esquecia alguma, confundia as punições e os anos, mas estava praticamente pronto para substituir aquele compêndio imbecil em sua tarefa inútil de fazer peso e juntar poeira.
Vero me observava com curiosidade crescente, fazendo perguntas e falando sobre todos os tipos de assuntos, ações cujo sentido eu ainda não havia compreendido.
Bernardo – ou Bruno – me visitou quase diariamente, passando até mesmo algumas noites ao meu lado, sua cabeça pendendo de sono, ameaçando derrubá-lo da cadeira. Ele chegou a ter problemas em seu grupo de trabalho por causa das ausências, mas insistia em perder seu tempo comigo.
Todos os outros membros da medicina que cuidaram de mim também me tratavam com a mesma dignidade e atenção, como se eu fosse alguém importante. Eles esperavam que eu me sentisse melhor com isso, mas a verdade é que eu me sentia péssimo. Quanto mais me tratavam bem, mais eu os odiava. Odiava, acima de tudo, sua hipocrisia. Eu não era importante, e não era digno de nenhum cuidado. Eu estava ali por um motivo muito simples: por ser um perfeito idiota, e por fazer coisas extremamente estúpidas e inconsequentes.
Eu poderia me comportar e tolerar minha vida enquanto ela durasse. Poderia ter ficado quieto quando tinha cinco anos, e poderia ter ficado quieto na noite em que resolvi atacar Anton. Mas, graças ao meu orgulho e vaidade, eu agora estava dando trabalho para dezenas de pessoas, e colocando suas vidas em risco. Mais uma vez.
Eu me sentia um monte de merda por isso.
O som ritmado de minhas muletas batendo contra o chão de pedra me entorpecia quando Vero entrou no quarto. Ele carregava um ar mais preocupado do que de costume.
- Iago, precisamos ter uma conversa.
- Poderíamos ter uma maravilhosa manhã ao sol, mas você tem razão, é melhor mais uma conversa entediante num hospital embolorado.
Ele não riu. Estava cansado de minhas piadas idiotas. Eu mesmo já estava cansado delas. O tédio de ficar confinado naquele quarto estava me transformando numa pessoa mais mal-humorada do que eu era por natureza.
Os dois meses que passei ali me fizeram refletir sobre muitas coisas, principalmente em como deve ser horrível ficar preso. A cidade não tinha cadeias, e o lado bom é que eu jamais teria de passar pela agonia de ficar enclausurado caso me pegassem. O lado ruim é que, na ausência de cadeias, me restava apenas a guilhotina.
- O que você pretende fazer a partir de agora? – ele continuou, sentando-se sobre a maca para que eu pudesse me ajeitar na cadeira.
- Para ser sincero, eu tinha planos de não estar vivo, mas já que vocês me atrapalharam com isso, estou incerto a respeito do que seria melhor. Acho que você tem a responsabilidade de decidir, já que a culpa de eu estar aqui é toda sua.
Ele soltou um grunhido.
- Você é muito irritante. Não vejo a hora de me livrar de você.
- Então temos um ponto em comum.
Ele cobriu o rosto com as mãos, controlando a respiração.
- Você tem consciência de que, se aparecer lá fora, Anton vai te caçar até acabar com você? Ele está te procurando, todos os dias. E se ele descobrir que você esteve aqui, cabeças vão rolar, e não serão poucas. Eu tenho sugestões para você, mas gostaria de verificar primeiro se você tem algum desejo particular.
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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...