Os dias se transformaram em semanas. Depois em meses.
Trabalhávamos na loja de manhã e à tarde, removendo a fuligem que parecia brotar incessantemente das paredes, organizando caixas de munição, limpando e lustrando armas de todos os tipos, e de vez em nunca atendendo algum cliente.
Os clientes eram invariavelmente o tipo de pessoa que te faz atravessar a rua para não correr o risco de passar perto. Eu e Bruno mantínhamos contato visual enquanto eles estavam na loja, e eu podia ver sua mão direita posicionada com firmeza sobre a arma escondida em seu bolso lateral todas as vezes que os sujeitos agiam de maneira suspeita. Laura, no entanto, se tornava a garota mais dócil do planeta, sorrindo e falando com gentileza.
Se ela não era psicopata, com certeza era uma criatura muito peculiar.
Quando o sol ia descansar, era nossa vez de entrar em combustão.
Corridas. Flexões. Agachamentos. Saltos. Quedas. Socos. Chutes.
Tiros para Bruno. Facadas para mim.
Logo estávamos quase no mesmo nível, e os combates demoravam mais para terem um vencedor. Chegamos a ficar horas tentando derrubar uns aos outros, e nunca saíamos inteiros. Sempre havia no mínimo um corte, uma distensão, um hematoma, um membro torcido. A dor já era um hábito, e praticamente irrelevante.
Além de treinos físicos, passamos a exercitar também nossas mentes.
Quando os corpos já não podiam mais, era o momento em que sentávamos no porão, com uma lâmpada precária, e nos enfiávamos em livros e mais livros. Laura tinha uma porção deles.
Estudávamos de tudo, principalmente história, geografia, ciências e inglês. A história nos ensinava a prever o futuro através do passado. A geografia nos ensinava a conhecer onde estávamos pisando. Ciências serviam para nos guiar em tarefas como instalações elétricas, funcionamento de equipamentos solares e outras tecnologias, além de conhecimentos biológicos práticos, como uso de medicamentos, primeiros socorros e o-que-fazer-quando-seu-amigo-está-quase-morrendo-em-seus-braços-e-gritando-de-dor, entre outras coisas úteis para pessoas de nossa posição social. Inglês era o idioma que nos permitia ler mais uma porção de livros, e também ouvir rádio e nos comunicar com estrangeiros, assim como operar aparelhos e máquinas que não tinham informações traduzidas. Enfim, tudo que nos garantisse mais um dia ou dois de sobrevivência.
Demoramos no início, porque tivemos que ensinar Bruno a ler. Mas ele era esperto para aprender, e nos acompanhou rápido.
Nas poucas horas em que eles dormiam, eu gastava minha insônia com a literatura. Poemas, romances, contos, crônicas... Eu deixava que os pensamentos de pessoas mortas me invadissem e me mostrassem que eu não estava tão sozinho quanto pensava em minha jornada de arrependimentos e medos. Era incrível a quantidade de sofrimento humano que já havia sido escrito, não somente documentado nos fatos frios da história, mas também elaborado em canções e enredos repletos de agonia e desespero.
Era por isso que o Palácio não queria que lêssemos livros, porque então saberíamos que o mundo nunca foi o Paraíso, e que a dor existencial é o único território que dividimos enquanto espécie, sem fronteiras que nos separem.
Desde os primeiros poemas da Idade Média, até os últimos romances das décadas anteriores à Guerra, a mensagem era exatamente a mesma:
Viver dói.
Viver dói, seja você um nobre dinamarquês, uma aristocrata inglesa, um mendigo americano, um louco hispânico, um andarilho no sertão, ou um personagem futurista que viaja pelo tempo e espaço, não importa. Viver dói. E dói muito. E dói tanto que precisamos gastar linhas e linhas tecendo um amontoado de palavras confusas para tentar mostrar a alguém aquele grito que ficou preso nos pulmões.

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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...