O mundo é grande. O mundo é enorme.
O mundo estende seus braços em forma de estradas, e nos traga para seu peito, nos rodeia, e nos enlouquece.
Eu mantive os olhos abertos o tempo todo, durante as longas horas em que dirigimos através das paisagens devastadas. Algumas eram bastante bonitas, cheias de plantas e construções que desafiavam a gravidade. Outras eram horríveis, e traziam o cheiro da morte à distância. O mundo, afinal, é assim. O mundo é incrivelmente belo, e terrivelmente feio.
- Você devia tentar dormir. Não sei quando teremos tempo para isso. – ele comentou, sem tirar os olhos da estrada.
Bruno havia crescido e envelhecido em menos de um dia, desde que saímos da cidade. Ele era adulto agora, seus braços estendidos autoritariamente sobre o volante como se fosse o hábito mais natural de sua vida. Eu achava que conhecia o garoto órfão da agricultura. Estava enganado. O homem ao meu lado era um completo estranho, e parecia esconder quilômetros de raízes sombrias abaixo da superfície simplória e ensolarada. Dirigir carros e colher cenouras não eram a mesma coisa, e aparentemente ele se saía melhor na primeira do que na segunda. Não deixei esse detalhe passar, e não deixaria nenhum outro. Não saber quem está ao lado é o primeiro deslize em direção ao desastre.
- Qual é o plano? – perguntei, observando o mundo que corria atrás de minha janela.
- Você é o senhor dos planos. Me diz você.
- Eu nem sei para onde você está me levando.
- Estou nos levando para um lugar seguro, inicialmente. Vamos procurar abrigo, comida e armas. Depois disso, vamos descobrir onde podemos morar.
Acenei, ainda olhando pela janela. Aquele mundo estranho se tornaria minha casa, já que eu não poderia voltar. Eu tinha a intuição, porém, de que ali fora minha habilidade com marcenaria não serviria para nada.
Estrangeiro.
A palavra saltou à minha mente.
Sentir-se um estrangeiro é uma das sensações mais inquietantes que alguém pode sentir, principalmente quando se sabe que ela vai perdurar por muito tempo.
Estrangeiro. Alguém que não pertence à sua própria terra, e que também não pertence a nenhuma outra. Uma ponte erguida sem alicerces, e que não chega a lugar algum. Um andarilho que tenta se conectar aos demais, e sempre se depara com sua solidão.
Ao cair da noite, paramos.
Não pude ignorar o fato de que Bruno apagou todas as luzes que o carro emanava, até mesmo a luz interna, que nos permitia enxergar um ao outro. Ele saiu por um instante, subindo na parte da frente da lataria para ter uma visão mais ampla dos arredores, estreitando os olhos em todas as direções antes de voltar para dentro, fechando a porta com delicadeza para que não fizesse barulho e travando as trancas. Qualquer ruído desnecessário que eu produzisse seria imediatamente recompensado com um sinal ou expressão de raiva. Ele estava cauteloso, como um animal que se esconde. Estávamos nos escondendo do quê?
- Vamos passar a noite aqui hoje. – ele disse, retirando um cobertor sabe-se lá de onde, e virando as costas para mim, reclinado em seu banco – Preciso descansar um pouco antes de poder dirigir mais. Veja se dorme também, está entendendo? E não apronte nenhuma gracinha, carpinteiro. Isto aqui é o mundo real, e você é um recém-nascido para ele.
E você é meu pai, claro...
Eu tinha uma resposta à altura e bastante ácida para ele, mas resolvi ficar quieto. Suspirei, tentando manter a calma. Era a situação mais constrangedora de minha vida.
E era óbvio que eu jamais conseguiria dormir ali.
Em poucos minutos, o imbecil já estava roncando. E minha certeza de ter uma noite insone aumentou ainda mais. Com a ventilação desligada, o ar já estava ficando pesado, cheirando a seres vivos. Uma noite inteira confinado numa lata de metal com outra pessoa me deixaria louco.
Discretamente, abri minha porta, tentando não fazer barulho, e saí para a noite fria.
Aproximei o rosto da janela para verificar se não o tinha acordado. Ele ainda dormia com a boca aberta, numa posição ridícula. Me afastei do carro, olhando em volta.
As estrelas no céu eram as mesmas de sempre, mas todo o resto era diferente. Havia um som repetitivo e constante, como de folhas sendo dobradas pelo vento, embora mal houvesse árvores ali. O vento era forte, e trazia consigo um cheiro enjoativo, salgado.
A sensação era a de ser um alienígena em meu próprio planeta, meus sentidos enganando a percepção de realidade.
Meu pai gostava de falar sobre como o clima era diferente em outros lugares. Ele falava sobre paisagens completamente cobertas por água, e outras completamente cobertas por areia. Havia lugares quentes, e outros mais frios do que eu poderia imaginar. Ventos capazes de levantar casas, chuvas que transformavam cidades inteiras em rios, cascatas com dezenas de metros de altura... "O clima nos faz ser o que somos", ele costumava dizer, "e se você mudar de clima, você muda".
Caminhei até a beira da estrada, meu cabelo chicoteando sobre os olhos sem piedade. O vento trazia partículas duras que raspavam minha pele, provocando uma dor quase agradável. Dei mais alguns passos, atraído pelo misterioso desconhecido que me acariciava e me agredia simultaneamente, o som do vento em meus ouvidos me preenchendo com a paz de estar completamente sozinho, acompanhado somente pela noite.
E então vi a coisa mais maravilhosa do mundo.
Eu vi onde o mundo acaba.
E o mundo acaba em uma escuridão furiosa de água salgada.
Passei aquela noite toda sentado sobre a areia, minha mente silenciosa como nunca antes, olhando para o mar.
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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...