A ferida do tiro em meu ombro parecia prestes a criar vida própria. Pulsava, recusando-se a cicatrizar, e já começava a cheirar mal. A pouca energia que restava em meus músculos estava sendo lentamente drenada para tentar curar a infecção, inutilmente. A febre e a fraqueza que se alastravam por meu corpo eram o sinal de que eu estava perdendo aquela luta.
Aguente mais um pouco.
Estendi os braços para alcançar a última prateleira. Tentei me mover com calma, trincando os dentes para controlar o ardor que repuxava as queimaduras em minha pele. Num movimento errado, minha mão esbarrou em algumas embalagens.
As caixas de papelão caíram sobre mim, suas pontas duras rompendo a pele ressecada.
Gritei até esvaziar os pulmões.
Me lancei de joelhos sobre o chão e tateei as caixas na penumbra, quase as esmagando entre os punhos. Se meu corpo estivesse mais forte, eu teria derrubado aquele lugar.
Li os nomes nas caixas. Anti-inflamatórios. Era o que eu mais desejava no mundo todo.
Peguei uma delas nas mãos e aproximei do rosto.
Vencido há pelo menos duas décadas.
Gritei novamente, atirando a caixa para longe.
- Vá se ferrar!
Agora que estava sozinho, não tinha motivos para esconder as emoções. Nem mesmo tinha essa capacidade.
Agarrei o ferro das prateleiras entre os dedos e as sacudi com fúria, derrubando todas as caixas restantes. Uma chuva de dor sobre mim.
- Você tem que ter alguma coisa! Não me diga que não tem nada, merda!
Revirei mais embalagens. Duas décadas. Treze anos. Dez anos. Quatro...
Apertei aquela última com força.
- Vai ter que funcionar.
Abri a embalagem e tomei dois comprimidos ao mesmo tempo. Era a primeira vez que eu tomava remédios na vida, e não tinha ideia de qual seria uma dose aceitável. Só sabia que a dor aumentava a cada minuto, e eu precisava fazê-la parar.
- Antibióticos. Preciso de antibióticos para a infecção.
Levantei sem apoio e caí sobre o balcão principal, derrubando mais uma porção de embalagens. Seringas e ampolas se espalharam à minha frente. Eu teria que ler cada uma delas e tentar decifrar os componentes de seus nomes complicados.
Esmurrei a lateral do balcão.
Apertei os olhos para identificar as letras minúsculas no escuro, descartando as caixas até encontrar o que procurava. Encaixei o frasco na seringa e observei enquanto o líquido transparente escorria de um tubo para o outro.
- Se esta porcaria estiver contaminada, será pior do que se eu não injetar.
Minhas mãos tremiam. Aproximei a agulha de meu ombro ferido.
Se o remédio funcionasse, eu estaria a salvo da infecção. Se ele me contaminasse, eu morreria. Se eu não o injetasse, a infecção me mataria em algumas semanas, de uma maneira bastante desagradável.
- Que seja.
Enfiei a agulha na pele dormente e esvaziei o conteúdo.
Joguei a seringa pra longe quando terminei, recostando a cabeça sobre a parede e fechando os olhos.
Está tudo bem. Seu corpo vai se recuperar. Você vai conseguir sair dessa.
O problema de resolver as questões de meu corpo era que, assim que eu me desocupasse dele, minha mente voltaria a me torturar com as lembranças. Resistir era inútil. Ela me pegaria, mais cedo ou mais tarde.
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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...