Sangue

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Não pretendo entrar em detalhes sobre o que aconteceu.

Só posso dizer que o porão em que fomos mantidos prisioneiros não tinha janelas, o que não nos permitia ter noção do tempo. Poderiam ter se passado horas, dias ou semanas, é impossível dizer, e também é irrelevante.

De início ele não me tocou, e eu pensei que não poderia existir terror maior que aquele que eu observava.

Ingênuo, como sempre...

O tempo se arrastou lentamente. Meu corpo tremia em espasmos, os nervos saltando como espinhos de minha pele a cada novo grito agudo de minha mãe.

Anton não queria saber muito. Ele só precisava de uma informação. Ele queria os nomes e grupos de todos os Surdos, e repetia a pergunta um milhão de vezes, mantendo um sorriso leve no rosto.

Meu pai não emitia um único som. Seus olhos nem mesmo piscavam mais. Se não fosse pelo fraco movimento de seu peito, juraria que estava morto.

Pensei que sua inércia o salvaria, o colocaria fora de perigo. Pensei até mesmo em imitá-lo e me fingir de morto. Talvez assim o Auxiliador desistisse e procurasse outra pessoa.

Foi um pensamento idiota.

Anton se aproveitou mais ainda de sua incapacidade de reagir para cometer as maiores atrocidades que sua imaginação sádica permitia. Ele tentava atingir minha mãe, culpando-a pelas agressões de meu pai. Ela era responsável por ele, afinal, agora que estava inconsciente. E ela devia salvá-lo.

O fato de ele não gritar não tornava as coisas mais fáceis. Pelo contrário, fazia calafrios e lágrimas percorrerem nossos corpos inteiros.

Primeiro, Anton atingiu seu rosto. Sem reação.

Depois, arrancou alguns dentes. Sem reação.

Então ele começou a mutilar seu corpo, cortando pedaços.

Meu pai não demonstrava qualquer consciência. Nem mesmo tremia.

Eu sentia que meu coração subiria pelo peito até me afogar em sangue.

Eu queria que isso acontecesse. E rápido.

Eu sabia que se mordesse minha língua com força eu poderia morrer antes que ele percebesse. Bastava engolir discretamente o sangue, como dizia aquele livro sobre guerras que minha mãe tinha escondido na última prateleira, para que eu não pudesse ler.

Eu esfregava os dentes sobre a língua constantemente, ignorando os gritos para resolver se iria ou não fazer.

Aguardei, com esperança de que, de algum jeito, aquilo acabaria e sairíamos todos com vida para recomeçar em outro lugar. Não conseguia acreditar no que estava vendo. Não conseguia entender. A separação entre realidade e sonho ainda não fazia sentido em minha cabeça, e eu esperava, com todas as forças, que fosse apenas um pesadelo muito, muito ruim, e que minha mãe estivesse lá para me acordar de manhã, limpando o suor de meu rosto com um sorriso nos lábios, seus lábios que ainda estariam intactos, e não desfigurados como estavam agora.

Eu deveria ter feito. Até hoje me arrependo de ter esperado.

Não era um pesadelo ruim. E, se era, então eu não acordei ainda.

Havia chegado o momento de mudar de estratégia.

Não era só meu pai que parecia um morto. Minha mãe já não respondia. Não erguia os olhos do chão. Não gritava. Sua resistência a levou a um estado de inércia profunda. Sua mente fechou os olhos internos para não lidar mais com a situação. Já aconteceu comigo algumas vezes.

Eu observei meus pais, sentindo a maior solidão que já senti em toda minha vida.

Eles não voltariam mais.

Eles não tinham como voltar.

Haviam ultrapassado o limite do que podiam aguentar, e suas mentes já os tinham abandonado. Mesmo se sobrevivessem, seriam como cadáveres ambulantes. Era tarde demais para salvá-los, e seria melhor que morressem. As consequências do trauma seriam piores que a morte.

Foi assim que olhei para meus pais, ambos à minha frente, e senti a verdade afundar em meu peito:

Eu era órfão.

Eu estava sozinho.

Sem ninguém para me proteger.

Para sempre.

Com Anton.

Ele virou os olhos azuis para mim, rindo com malícia.

- Parece que chegou sua vez de me ajudar, Iago. Ou você pensou que iria ficar só na plateia?

Meus dentes batiam com força uns contra os outros. Eu queria mordê-lo e arrancar seu coração com meus dentes. Meus instintos gritavam. Meu corpo inteiro sacudia em tremores, movendo a cadeira sobre o chão de pedra. Mas meus instintos não poderiam me salvar.

Ele sabia como fazer minha mãe acordar.

Ele sabia, como se já tivesse praticado centenas de vezes.

Ele conhecia todos os caminhos físicos da dor. Cada milímetro.

Ele tinha a habilidade de tocar cada chave secreta em meu corpo que daria ignição a uma dor insuportável e enlouquecedora. Ele sabia como dar margem à dúvida para que fosse pior ainda. A dúvida entre gritar ou ficar quieto. A dúvida entre lutar ou me entregar. A dúvida entre despertar minha consciência com força total ou deixar que fosse dissolvida como a de meu pai. O que era pior? O que doeria menos? O que me salvaria?

Quando finalmente decidi morder a língua, ele já havia amarrado minha mandíbula.

O que você acha que existe em mais abundância no corpo humano? Sangue, ou lágrimas?

Qual deles é o primeiro a escorrer, e o último a secar?

Você sabe me dizer?!

Você sabe explicar?!

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