Inferno

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Por vários dias, tudo que pude lembrar foi a dor.

Uma dor excruciante, tão presente, que nem podia dizer ao certo se estava em meu corpo ou em minha mente. Mas eu sei onde estava...

O calor doentio da inflamação me fazia suar. Se existe um Inferno, com certeza ele é aquele momento de minha vida. Meu corpo não era mais feito de carne. Ele queimava há tanto tempo, que já deveria ter se tornado carvão. Os cortes latejavam e pulsavam. Eram vivos, mais vivos que eu. Eles eram centopeias de fogo, que se arrastavam sobre minha pele, repuxavam, rasgavam meu peito e meu pescoço em mil retalhos enquanto passeavam suas pernas ásperas e infinitas sobre mim.

O mundo exterior era um lugar sem sentido. Por alguns dias, ele nem mesmo existia. Tudo que existia era a dor e a ardência. Tudo que existia se resumia a mim, incapaz de enxergar, ouvir ou falar. Apenas sentir. Sentir imóvel e calado enquanto minha pele era consumida pelo fogo.

Cheguei a me esquecer de que havia um mundo lá fora. Cheguei a me esquecer de meu próprio nome. Cheguei a me esquecer de respirar.

Era bom. Meu maior desejo era que meu coração se esquecesse de bater.

Do meio das labaredas que me devoravam, porém, surgiu um rosto gentil.

- Como está se sentindo?

Não respondi.

- Tome, eu trouxe um pouco de comida para você. Faça um esforço.

Continuei inerte, e ele compreendeu minhas intenções.

- Se não comer, você vai morrer, Iago.

- Acertou em cheio.

Minha voz soou estranha para mim. Rouca, fria, dura. Não era mais a voz de uma criança, e nem a voz de um adulto. Era qualquer coisa perdida nesse meio-termo, caída em algum vão intermediário entre o que era e o que poderia ter sido, mas não foi.

Eu mantive os olhos fixos no teto. O teto também parecia consumido em brasas, delirando em vermelho. Pelo som, sabia que o Auxiliador havia colocado um prato de comida em algum lugar do quarto, e estava provavelmente próximo de minha cama.

Minha cama, como se eu pudesse chamar aquela maca hospitalar ardente de cama.

- Escute, garoto. – ele realmente estava perto – Eu entendo como você se sente, e estou aqui para tentar te ajudar.

- Você não entende nada, seu maldito desgraçado.

Fechei os olhos, certo de que ele me enforcaria até a morte. É o que eles fazem, afinal, quando são contrariados.

Sem atender às minhas expectativas, o Auxiliador não fez nada contra mim. Ele apenas aproximou a boca de meu ouvido.

- Iago, você quer lutar?

Abri os olhos para encará-lo e reconheci aquele olhar. O mesmo olhar que todos os amigos de meus pais usavam quando falavam entre si. O olhar dos Surdos.

- Porque se quiser lutar, eu posso te mostrar como.

- Já é tarde. – respondi – Está doendo muito.

Ele me mostrou uma seringa.

- Analgésicos. De fora da cidade. Eles vão diminuir a dor.

- Você sabe que não estou falando dessa dor.

- E você sabe que não estou falando de analgésicos.

Finalmente virei o rosto para ele, arrependido assim que a inflamação em meu pescoço repuxou todos os meus nervos.

- Eu disse que eles são de fora da cidade. – ele repetiu, pegando meu braço e injetando o remédio. A dor do toque era tão forte que eu mal senti a agulha.

- Você é um deles?

- Praticamente.

Ele passou álcool no local da aplicação e colou um curativo. Eu tive vontade de rir daquele mísero curativo, tentando proteger um centímetro de pele enquanto todo o resto do corpo estava estraçalhado.

Uma dor aguda percorreu meu braço quando ele o soltou repentinamente, correndo para fora da sala.

Pronto, agora sim estou morto.

- Lúcio! Volte para seu quarto!

A curiosidade me fez voltar o rosto para o outro lado, enfrentando os protestos de minha pele. E foi então que eu o vi pela primeira vez.

Um menino que mal conseguia ficar em pé, minúsculo, apoiando-se no batente da porta.

Ele olhava diretamente para mim.

Seus olhos estavam assustados. Deveriam estar. Afinal, havia um garoto deitado numa maca com metade do corpo mutilado olhando fixamente para ele.

Eu não me importei em disfarçar meu sofrimento, deixei que ele visse meus olhos profundos e roxos. Deixei que observasse minha pele fina e azulada. Deixei que ele se assustasse com a primeira imagem chocante que veria em toda sua vida. Eu queria que ele sentisse pavor de mim.

Para minha surpresa, o futuro Sacerdote não demonstrou qualquer traço de medo.

Ele sorriu para mim.

E por algum motivo que até hoje não compreendo, seu sorriso me deu forças para lutar.    

    

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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora