Chovia torrencialmente quando cheguei à Decapital.
A ausência de luzes dificultou a travessia pela floresta, meus pés mergulhando até as canelas no barro escorregadio, me fazendo cair algumas vezes. A eletricidade é uma coisa à qual você se acostuma rápido, e não se desacostuma nunca mais.
Tive medo de ligar minha lanterna e chamar atenção. Fazia anos que não tinha notícias sobre a situação daquele lugar, e não queria correr o risco de estragar tudo agora que estava tão perto. Lanternas e fogueiras só poderiam ser usadas quando eu estivesse ciente de como o Palácio havia se reorganizado depois da Limpeza. Então caminhei com cuidado através da noite, desabituado a desviar de galhos e pedras.
O cheiro de plantas era um alívio depois de anos respirando fumaça e poeira. Eu tinha nascido rodeado por árvores, afinal, e o frescor do bosque era um prazer há muito esquecido por meus pulmões.
O pensamento me fez estagnar por um minuto, tentando alinhar as ideias no meio de tantas contradições. Eu jurava que voltar ali me traria somente sofrimento. Nostalgia e conforto eram sensações que passavam longe de minha mente. Eu deveria tremer de medo por estar de volta, e, pelo contrário, me sentia estranhamente seguro.
É a ilusão de estar perto de casa. Só porque o território é conhecido, tendemos a baixar a guarda e relaxar os nervos, como se aquele lugar não fosse tão perigoso e violento quanto as cidades por onde passei. O desconhecido apavora mais que o conhecido, e, por esse motivo, eu tinha mais chances de escorregar para a morte ali do que em qualquer outro lugar.
As gotas de chuva que atingiam minha pele não eram menos mortais que as balas que voaram em minha direção. Eram até piores, porque eu não desviaria delas com tanta agilidade.
Parei de caminhar, fixando os olhos na silhueta à minha frente.
Minha casa.
Ou o que restava dela.
Entrei, a porta finalmente se soltando das dobradiças e caindo em minhas mãos.
Acho que sentíamos o mesmo, eu e a porta. Ela se segurou o máximo que pôde, e desabou assim que reconheceu um rosto familiar. Eu não tinha as mãos de ninguém sobre quem desabar, então apenas me mantive em silêncio, meus olhos se acostumando com a escuridão do lugar que um dia já havia sido um cenário de esperança e amor.
Restavam alguns móveis, roídos e empoeirados, mas eu sabia que não poderia levá-los comigo. Não poderia tocar em nada que pertencia a Iago. Ele tinha que morrer e desaparecer, e sua casa teria o mesmo destino. A casa que um dia fora minha estava fadada a ruir e ser devorada por cupins até que não fosse mais possível reconhecer uma casa. Assim também era comigo, um processo que já estava quase concluído.
Depositei a porta sobre o assoalho trincado. Aquela maldita porta, que deveria ter cumprido sua função de deixar o perigo do lado de fora, mas nunca cumpriu. Agora ela estava dando as caras e mostrando sua real utilidade: cair sobre o chão, no desespero de um colo sobre o qual deitar.
Covarde.
Passei os olhos uma última vez pelas paredes e pelos móveis.
Aquilo não era uma casa. Era um túmulo.
Eu podia ver nós três ali. Meu pai, minha mãe e eu, nossas vozes preenchendo o ar que agora pesava sob um silêncio esmagador. Os três estavam mortos, e eu precisava sepultar seus cadáveres ali, antes que o peso de meu coração fosse grande demais para suportar.
Abandonei a porta em sua merecida solidão e virei as costas para meu passado. Eu queria ter incendiado aquela casa. Queria tê-la visto arder e queimar, até que não sobrasse nada. Observar as chamas consumindo minha infância era a melhor maneira de me libertar. Se eu a queimasse, porém, seria a prova de que Iago estava vivo.
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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...