Minha recuperação estava sendo mais rápida do que esperava, o que aumentou ainda mais as expectativas de Vero sobre mim. Ele ainda não estava convencido de minha saúde emocional, e insistia em interrogatórios intermináveis sobre sentimentos e ideias. Eu tentava argumentar que não havia motivo para preocupação, minha personalidade nunca foi muito sadia mesmo, e eu estava acostumado a me sentir mal. Além disso, nada que ele pudesse fazer mudaria meu estado. A menos que usasse drogas poderosas, coisas que não tínhamos em nossa cidade, eu continuaria tão deprimido e violento quanto sempre fui. Eu me sentia bem assim. Se eu demonstrasse contentamento diante da realidade, então teria motivos para duvidar de minha sanidade. Estar deprimido em situações deprimentes não é uma doença.
Eu observava seus olhos enquanto ele percorria meu corpo com os dedos frios, procurando por feridas ou contusões.
- Me diga se sentir dor, está bem?
Eu apenas murmurei uma meia-resposta. Já não sentia dor como antes, embora meu corpo inteiro latejasse e adormecesse, cansado de ficar tantos dias deitado na mesma maca. Eu precisava me mover com urgência.
O Auxiliador continuou a me examinar.
- Como vai seu filho? - perguntei casualmente, sem erguer o rosto nem a voz.
Ele se afastou, olhando-me com terror.
- Que filho, Iago?
- Seu filho. Lúcio.
- Lúcio não é meu filho.
É tão divertido quando pessoas como Vero tentam mentir... Elas são tão ruins nisso, que chega a me dar pena.
- O garoto é a sua cara. - continuei - Até um cego poderia ver isso.
Ele se abaixou bruscamente sobre mim, aproximando o rosto sombrio. Sua tentativa de me intimidar era tão risível quanto sua tentativa de me enganar.
- Você deve jurar que nunca vai dizer isso a ninguém, está ouvindo?!
Eu movi os ombros, que estavam inflamados e duros, e mal me obedeciam.
- Você sabe que não pode esconder isso para sempre, não sabe? Ele vai crescer e se tornar exatamente como você.
Vero desviou o rosto, fingindo se ocupar com qualquer equipamento médico ao fundo do minúsculo cômodo.
- Você tem uma capacidade de observação muito superior à de qualquer pessoa desta cidade, Iago, e eu admiro sua qualidade, e acredito que isso é justamente o que precisamos no momento. - de costas, metade das palavras se perdiam na parede antes de chegarem até mim, e eu tive que me erguer um pouco para escutar melhor - Mas não superestime os outros. Eles são capazes de acreditar em qualquer coisa, desde que os líderes digam que é verdade. E todos continuarão sempre repetindo que ele é o filho do Sacerdote, até que não restem dúvidas. Você sabe que é assim que as pessoas funcionam. Se você insistir que uma pedra fala, por exemplo, elas acreditarão, mesmo que não possam ouvir. Elas acreditam na Voz, por que não acreditariam que ele é filho legítimo do Sacerdote?
- Pessoas acreditam naquilo que lhes interessa, Vero. Elas veem só o que desejam ver, e tendem a enxergar o erro dos outros mais do que os seus próprios. Pode apostar que eles vão enxergar a verdade sobre Lúcio, mesmo que jamais se questionem sobre todo o resto. Pessoas e cobras são iguais, em astúcia e em preguiça. São muito rápidas quando querem fazer mal a alguém, e muito lentas quando estão com a barriga cheia.
Ele suspirou. Sabia que eu tinha razão.
- Mesmo assim, eu te imploro que nunca conte isso a ninguém.
- Você pretende contar a ele?
- Nunca.
- Isso é bastante injusto com o garoto, não acha?
- Num mundo em que Anton representa a Justiça, eu prefiro ser injusto com meu filho.
Ele passou a mão pelos cabelos, que começavam a ralear em algumas partes.
- Ele pode ser meu sangue, Iago, mas está longe de mim. Ele será um deles, e será nosso inimigo. Por favor, me prometa que não vai se aproximar dele. Me prometa que vai manter a devida distância. Você não pode deixar que ele saiba de nada disso, nunca, ou todos nós vamos estar em perigo, e ele também. O sofrimento que ele está fadado a carregar já é grande demais, não o aumente.
- Não gosto de prometer coisas que não posso cumprir.
Ele cobriu os olhos com as mãos.
- Garoto, você me dá dor nos rins com essas suas ideias loucas. Você vai acabar matando todos nós. Eu deveria te amarrar nessa maca e te manter sob vigilância constante, antes que você faça algo realmente perigoso. Você é inimigo da cidade, nunca mais poderá sonhar em chegar perto do palanque. Se fizer isso, a guilhotina estará esperando por você. Acho que você ainda não percebeu o tamanho do problema em que se enfiou.
Eu me sentei sobre a maca. Era a primeira vez em muito tempo que conseguia fazer isso.
- Confie em mim, Vero.
- Confiar em você?! - ele riu com escárnio - Você é o sujeito de quem mais desconfio neste mundo. Você é tão confiável quanto uma serpente mostrando os dentes.
- Você confia mais em serpentes que escondem os dentes do que nas que mostram?
Eu sorri.
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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...