Crime

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Eu estava crescendo, me tornando fisicamente mais forte, e emocionalmente menos estável.

Em momentos de completa solidão, a fúria me possuía, e eu enxergava um estranho no espelho. Eu gritava, esmurrava as paredes, quebrava todos os objetos de casa, sem nenhum motivo ou explicação. O fogo ardia em minhas veias, e um instinto assassino se apoderava de minha mente, me enlouquecia. Eu já não sentia desejo de me matar, sentia desejo de matar outros.

E em breve eu não poderia conter isso.

Foi num desses dias que Anton resolveu voltar. Ele me visitava com cada vez menos frequência, provavelmente devido à bagunça que o Palácio estava. Depois da Limpeza, a situação do Palácio aparentava ser boa, mas qualquer observador atento perceberia a confusão que assolava aquele lugar. O medo de uma nova rebelião era constante, e claramente havia divisões internas. O Sacerdote estava sempre se envolvendo em atritos com os Auxiliadores, segundo me contava Bruno, e corriam boatos de que ele renunciaria em breve, algo raro de ocorrer entre os Sacerdotes.

Anton parecia tenso também. Ele havia mudado a forma como me tratava. Não falava comigo em um tom infantil, e não era tão irônico. Ele parecia mais sério, agia com mais agressividade, mais medo. Ele certamente percebeu que eu estava crescendo, e dentro de alguns anos seria tão forte quanto ele. O que ele faria comigo, então? Ou teria que desistir de suas provocações e desaparecer, ou teria que pôr um fim definitivo à minha vida. Eu tinha plena consciência disso, e estava me preparando.

Ele veio ao final da tarde. Era o início da estação chuvosa, e a temperatura começava a cair bruscamente à noite.

Eu estava tão fora de mim que não me deitei dessa vez.

- Adivinhe só, Iago? Haverá uma execução amanhã. Parece que alguém estava ensinando crianças a escreverem, mas uma delas escreveu demais, e agora vão todos para a guilhotina. São cinco, ao todo. Quatro crianças e uma idosa. – ele mantinha um sorriso nos lábios enquanto falava – Não existe especificação para isso nos Crimes Imperdoáveis, mas eu consegui enquadrá-los no artigo de negação da autoridade da Voz. Se a Voz não ordenou que escrevam, quem são eles para desobedecer?

Uma risada estalou em sua garganta.

- E eu vim aqui para te convidar. Vou deixar um lugar reservado só para você, o que acha?

- É bom que esse lugar seja debaixo da guilhotina. – rosnei. Eu nunca dirigia uma palavra a Anton.

Ele arregalou os olhos, surpreso. Além da surpresa, eu sentia medo em seu olhar.

- É claro que não, Iago. Eu jamais te condenaria à guilhotina. A menos, é claro, que haja um motivo para isso. Você não anda cometendo nenhum Crime, anda?

- O que é um Crime, Anton?

Era a primeira vez que eu falava o nome dele. E era a primeira vez que eu o encarava nos olhos. E era a primeira vez que eu descobria o quão assustadora minha voz podia soar.

- Ora, você sabe o que é um Crime... – ele se afastou alguns centímetros de mim – É tudo aquilo que desagrada à Voz.

- E o que desagrada à Voz? – cobri a distância que ele tinha se afastado, intimidando-o.

- As dúvidas desagradam à Voz, assim como a rebeldia, a desobediência, a afronta...

Seus olhos endureceram sobre os meus, acusadores.

- Você realmente acredita na Voz, Anton? – eu podia sentir sua respiração curta em minha pele – Você acredita que existe alguém lá em cima te aplaudindo por torturar crianças?

O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora