Os anos que passei como Iago foram muitos, e escorreram entre meus dedos como areia. Cada memória, cada sentimento, cada momento bom e ruim, tudo me escapou, segundo após segundo, como uma grande ampulheta que me prendia e me sufocava.
E então a ampulheta virou, e meu tempo começou a ser contado de modo reverso. Como Dantálion, não eram mais os anos que eu tinha passado, e sim os anos que me restavam que definiam minha idade.
A cada dia, a cada mês, não era mais um, e sim menos um.
O tempo sempre foi meu maior inimigo, e a cada movimento do ponteiro, a cada batida de meu coração, eu perco.
Menos um.
Menos um.
Menos um.
Menos um...
Quanto tempo, Dantálion?
O tempo nunca é suficiente.
E mesmo quando vi a sala da Ordem dos Surdos se encher com as túnicas negras, e mesmo quando vi surgirem aliados leais, e mesmo quando vi nosso grupo crescer e se fortalecer, eu continuava destacado da realidade, intangível, como um fantasma, com os olhos fixos em outro lugar.
Meus olhos se mantêm fixos na guilhotina.
A lâmina havia roubado meus pais. Havia roubado minha infância. Havia roubado meus sonhos.
E ela continua lá, me encarando de volta, esperando por mim, sorrindo com seus dentes de metal enquanto entoa seu mantra maldito:
Menos um... Menos um...
A vertigem faz o mundo inteiro se curvar à minha volta, mas a guilhotina permanece em pé, solene, esperando...
Menos um...
Com sede de meu sangue.
Menos um...
Quando o último grão de areia cair da ampulheta, ela matará sua sede.
Menos um...
E também matará a mim.
Fecho as mãos em volta do pescoço, tentando puxar a corda que se enrosca em minha garganta, afundando nas cicatrizes de minha pele. Meus dedos falham, incapazes de arrancar a amarra invisível que mais uma vez bloqueia o ar. É quase como se eu pudesse sentir, sentir a lâmina me cortando, atravessando lentamente cada milímetro, rasgando todo meu interior, separando meus pensamentos de meu corpo...
Eu sufoco, enclausurado em minha mente, a guilhotina imponente me observando com toda sua majestade e frieza enquanto a cerimônia da apresentação do futuro Sacerdote prossegue.
As imagens são confusas. Os aplausos parecem distantes. As palavras ditas sobre o palanque chegam a meus ouvidos sem significado algum, uma encenação ridícula. Todos sabem que quem realmente manda nesta cidade não é aquele homem, mas a guilhotina ao seu lado. E ainda assim ele é aplaudido, como se fosse um deus encarnado. Eu não o ouço.
Tudo que posso ouvir é meu próprio coração, pulsando seu verso agonizante:
Menos um.
Menos um.
Menos um...
Minhas pernas falham, ameaçam me jogar sobre as pedras. Foi uma péssima ideia vir à Audição. Já é uma situação naturalmente perigosa, sair à luz do dia e ficar preso no meio de uma multidão bem debaixo dos olhos de Anton. É o pior lugar em que eu poderia estar, e é o pior lugar em que eu poderia ter uma crise.
Meu corpo treme. Meu peito me força a me curvar para encontrar ar.
Se eu cair, estou morto.
Se eu cair, vou ser notado, e eles vão olhar para mim, e vão tentar me levantar, e vão chamar a atenção do palanque, e então eu estarei morto.
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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...