A noite já estava escura do lado de fora, e nós três sabíamos que precisávamos ter uma boa conversa. A garota, que se apresentou como Laura, nos levou ao subsolo da loja, que me lembrava do quarto hospitalar em que eu havia passado os últimos meses. Com a diferença, porém, de que este tinha luz elétrica, e nos dava o poder divino de matar a noite para fazer nascer o dia, quantas vezes quiséssemos, ao apertar de um botão.
- Você quer parar com isso? Vai acabar queimando.
Ela me lançou um olhar de censura. Tirei os dedos do interruptor automaticamente.
Naquele momento, eu não conseguia entender como uma garota solitária seria estúpida o suficiente para deixar dois estranhos passarem a noite no porão de sua loja. Qualquer garota teria noção do perigo que isso representava, ainda mais numa cidade violenta como aquela.
Só mais tarde eu entenderia que Laura não era qualquer garota.
Sozinha, ela mantinha uma loja de armas, e não era sem motivo. Ela poderia ter acabado com nós dois, com uma mão e uma perna nas costas, sem uma gota de esforço.
Estávamos ao redor da pequena lâmpada amarela, encarando nossos pés, com receio de olharmos nos olhos uns dos outros. Finalmente eu retornava à sobriedade, e o cansaço amarelado tentava forçar meu rosto para baixo. Fazia no mínimo três noites que eu não dormia decentemente, e meu corpo exigia que eu tomasse alguma providência quanto a isso.
- O que vocês estão fazendo aqui? Quais são seus planos? – ela perguntou com seriedade, olhando para Bruno, e não para mim.
- No momento, queremos só nos estabelecer em algum lugar, até que possamos planejar o que fazer.
- Por que vocês saíram da cidade de vocês?
- Porque o sujeito aqui resolveu bater com uma tábua no Auxiliador da Justiça.
Ela riu, me encarando com aprovação.
- Ele é realmente precoce. Eu gostei dele.
- Gostou dele porque ainda não passou um dia inteiro ouvindo as merdas que ele diz.
- Vocês podem parar de me tratar como se eu não pudesse ouvir?
- Desculpe, Iago. Eu às vezes esqueço que sua orelha ainda funciona.
- Aliás, o que houve com sua orelha?
Eu me levantei, irritado.
- Escutem aqui, bando de idiotas! Não viemos aqui para falar de mim, e se vocês falarem mais alguma coisa sobre mim, eu juro que arrebento os dois! Estamos num estoque de armas, e a coisa pode ficar muito feia. Então sugiro que vocês calem suas malditas bocas e respondam logo a única coisa que realmente interessa: como você ficou sabendo sobre os Surdos?!
Eles não reagiram de imediato, os rostos incrédulos virados para mim.
- Eu sei o que você vai dizer, ele é precoce. – Bruno comentou, rindo para ela.
Apertei os punhos, me controlando ao máximo para não dar um murro no meio de seu nariz.
- Conheço os Surdos porque vendíamos muitas armas para eles. – ela respondeu, assumindo um tom sério, para meu alívio – E sempre que vinham aqui, eu ouvia histórias sobre as coisas que estavam se passando naquela cidade. De uns anos pra cá, eles simplesmente sumiram, então presumi que algo ruim deve ter acontecido. Agora, aparecem vocês, praticamente duas crianças... Seja lá o que tiver acontecido, eu sinto muito. Sempre torci por vocês.
- O que você acha que aconteceu, Laura?! – a irritação pelo cansaço, falta de comida e excesso de álcool estava me tornando impulsivo. Eu queria muito bater em alguma coisa.
- Julgando pela sua cara, eu diria que vocês apanharam feio.
- Quem me dera ter apenas apanhado!
- Chega, vocês dois! Estamos perdendo tempo! – era a vez de Bruno parar a briga.
Laura respirou fundo. Aparentemente, nós três éramos iguais em descontrole.
- Vocês disseram que querem aprender a atirar, certo? Eu aceito o pedido.
Bruno me lançou um olhar que eu conhecia bem. Era óbvio que era bom demais para ser verdade, ninguém é assim tão generoso sem pedir algo em troca.
- Sinto muito por termos tomado seu tempo, Laura. Meu amigo aqui estava apenas delirando por causa da bebida. Nós não temos dinheiro, nem emprego, e não podemos pagar por nada além das pistolas que pedimos. Se nos permite, gostaríamos de sair agora.
- Vocês podem passar a noite aqui.
O olhar de preocupação de Bruno retornou. Aquela garota devia ser psicopata.
- Agradecemos pelo convite, mas já estamos indo.
- Vocês não vão a lugar nenhum.
Ela se levantou, bloqueando a porta.
Agora a coisa ia ficar complicada.
- O que você quer de nós, garota?!
- Eu preciso que vocês fiquem aqui.
- Por quê?!
- Não posso explicar. Só peço que fiquem, e eu ensinarei tudo que sei sobre combate.
- Não precisamos que uma garota nos ensine nada. Queremos lutar, não fazer tricô. Saia da minha frente!
Cobri a boca com as mãos, incapaz de acreditar que ele tinha sido idiota a ponto de dizer aquilo. Era simplesmente a pior coisa que ele poderia ter dito para alguém com o perfil de Laura. E iria pagar o preço, sem dúvida alguma.
A vida é cheia de escolhas, e a maioria delas é bastante ridícula. Escolha entre viver uma vida de merda numa cidade isolada, ou entre viver uma vida de merda numa cidade grande. Escolha entre a belíssima oportunidade de ter aulas de luta em troca de ser prisioneiro de uma mulher louca, ou escolha tentar passar por ela com uma piada altamente ofensiva.
Bruno escolheu a segunda opção, o que foi um erro terrível.
E eu escolhi apenas assistir enquanto ela o empurrava contra a parede e o enchia de socos.
Eu assisti, não porque não quisesse ajudá-lo, nem porque tivesse medo.
Apesar de achar que o cretino merecia, eu não desejava ter meu único aliado nocauteado por uma estranha que eu não poderia derrubar sozinho. Mesmo assim, fiquei calado enquanto observava, com fins meramente didáticos.
Apenas observei com atenção os movimentos precisos e certeiros dela. Observei como ela o dominava e o fazia recuar, mesmo sendo mais baixa. Observei como ela não se feriu, nem mesmo uma vez, enquanto Bruno cobria o rosto com as mãos, incapaz de se defender ou revidar.
Ela não era uma garota qualquer.
Ela era a perfeição manifesta em destreza e violência. Meu tipo preferido de perfeição.
- Já está bom. – eu disse, atraindo a atenção dos dois – Você me convenceu. Vamos ficar.
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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...