- Onde é que nós estamos, afinal?
- É segredo. Se eu contasse, teria que te matar.
Bruno insistia em suas brincadeiras, na esperança de me animar. Sentado sobre uma bancada, ele passava longas horas me observando, conversando comigo, tentando afastar o tédio dos dias insuportáveis em que tive que ficar imobilizado.
- Não seria muito difícil.
- O quê?
- Me matar.
Ele revirou os olhos.
- Você deveria fazer teatro. É a pessoa mais dramática que já conheci.
- Claro, até porque estar com as duas pernas quebradas e a orelha decepada não me dá nenhum direito de reclamar. – eu apontei para meu corpo – Certamente, eu seria o novo Shakespeare, caso ainda existisse alguma merda de teatro no mundo que não tenha sido explodido. Pena ter nascido aqui, e ter que te aturar, ao invés de usar todo meu talento para enganar a corte.
Ele mantinha uma expressão vazia. Aquela conversa era inútil. Ele provavelmente não fazia ideia de quem era Shakespeare.
Eu não o culpo, praticamente só minha mãe o conhecia. Ela adorava aquele sujeito, e encontrava motivos para falar dele a qualquer momento. Eu cheguei a ler algumas peças, mas, para ser sincero, não vi genialidade nenhuma naquelas histórias exageradas de pessoas rasas. Acho que depois de ver seus pais perderem o pescoço, ler histórias sobre reis arrancando cabeças não tem tanto impacto quanto deveria. Shakespeare não passou pela metade do que passei. Não tenho motivo algum para admirá-lo. E, mesmo que tivesse, demonstrar admiração por outros não faz meu tipo.
Minha mãe, por outro lado, se deixava ser absorvida por suas histórias como se fossem mais reais que sua própria vida. Se absorvia tanto, que me deu o nome em homenagem a uma de suas pessoas de mentira favoritas. O nome do pior vilão...
Minha mãe realmente não levava jeito para a coisa de ser mãe.
- Você me convenceu, vou te contar. – ele ria, agitando as pernas sobre a bancada – Estamos num dos centros de tratamento do grupo da medicina, dentro da região deles. É uma sala quase secreta. Se Vero não me guiasse, eu teria me perdido. Você se tornou o inimigo número um do Palácio, sabia? Sorte a sua que a medicina aceita cuidar de delinquentes como você.
A medicina era um dos grupos com mais problemas de lealdade ao governo. Não era difícil entender. Todos os outros grupos conseguiam se virar muito bem com madeira e ferro. A medicina, não. Eles precisavam de remédios, agulhas finas, materiais plásticos e outros equipamentos que não poderiam fabricar com os instrumentos precários da cidade. Além disso, seu Auxiliador costumava ser Vero até alguns meses antes. Os cretinos tinham bandeira branca para cometerem todos os crimes que quisessem. Sortudos.
- Você chegou a ver Anton depois que eu...?
- Depois que você colocou os bofes dele pra fora? Sim, eu vi.
- Como foi o estrago?
- Ficou bastante roxo, parecendo um saco de batatas podres. Mas ele já está melhor. Sabe o que dizem sobre as baratas... Elas se recuperam rápido. O lado bom é que você está sendo tratado pelo mesmo médico que ele, então logo seu rosto voltará a ser o que era, incrivelmente feio.
Não me irritei com a ofensa sem sentido. Tinha outros pensamentos em minha mente.
Bruno tinha razão. Vero continuava sendo o médico oficial do Palácio, apesar de dividir seu tempo entre a profissão e os cuidados intermináveis com aquele pequeno saco de moedas de ouro que chamavam de futuro Sacerdote. Patético.
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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...