Algumas coisas estão fadadas a darem errado desde o início. Nós sabemos disso, e mesmo assim ignoramos.
Se existe algum tipo de inteligência que nos programou, o sujeito deve ser realmente estúpido, ou brilhantemente sádico, por ter feito uma criatura com tamanho talento para a autodestruição. Chego a me convencer que o ser humano é um grande erro da natureza. Olhe só o que nós fizemos, sem a ajuda de ninguém... Aramos a terra, plantamos sementes, cuidamos até que cresçam, fiamos os fios, tecemos tapetes coloridos, esperamos nossos semelhantes limparem os pés sobre o tapete, e então o puxamos com força, e rimos enquanto o semelhante se estatela no chão. O problema é que não puxamos apenas tapetes: também evoluímos para puxar facas, espadas, armas, guilhotinas e bombas atômicas.
O ser humano é um erro, e não há quem me convença do contrário.
Eu sabia que não deveria deixar aquilo acontecer. Não deveria deixar um completo estranho se aproximar de mim daquela maneira, e não deveria expor meus sentimentos. Porém existe um momento em nossas vidas quando temos certeza de que vamos morrer, e simplesmente mergulhamos nos erros, como se eles pudessem nos aliviar.
E eu deixei que ele me aliviasse.
Os meses seguintes seriam divididos em três frações de tempo: número um, quando Anton vinha me visitar, e eu me mantinha deitado e mudo, tentando ignorar os minutos insuportáveis em que ele insistia em me provocar; número dois, quando eu ficava completamente sozinho, ainda deitado, refletindo se valeria a pena me levantar; e número três, quando ele vinha me visitar, e eu finalmente me sentava, dividia com ele um pouco da comida intragável que Anton havia deixado, e dividia com ele o meu sofrimento.
Bruno, como me acostumei a chamá-lo, agia como se fosse meu pai, e em outros momentos como se fosse meu irmão. Ele tinha também passado por coisas ruins. Também era um dos órfãos da Limpeza, nome que utilizávamos para nos referir a todas as crianças que haviam perdido os pais Surdos. Ele havia visto os pais morrerem, assim como eu, e podíamos partilhar essa dor. Mas, obviamente, eu tinha outras dores que ele não compreendia, e jamais poderia saber.
Eu evitava ao máximo falar sobre a Limpeza. Não porque não quisesse, mas porque me machucava muito ouvi-lo falando dos pais. Seu pai e sua mãe, ambos decapitados, assim como os meus. A diferença, porém, é que ele não era culpado pela morte de meus pais, enquanto eu era culpado pela morte dos dele.
A verdade me corroía, e eu sentia que chegaria uma hora em que ela escaparia de meus lábios contra minha vontade. Não poderia esconder para sempre o que aconteceu. Não poderia inventar muitas histórias para disfarçar o fato de que havia sido minha mãe, motivada por mim, que tinha delatado o nome de todos os Surdos que morreram naquele dia.
Antes de adormecer, eu podia ouvir a voz dela.
Eu ouvia sua voz em minha mente, dizendo cada um dos nomes...
Joanes, do grupo da mineração. Mauro, do grupo da tecelagem. Pedro, do grupo da agricultura. Cláudia, do grupo da medicina. Ângelo, do grupo da metalurgia. Paula, também do grupo da metalurgia. Sílvio, do grupo da marcenaria... E dezenas de outros, dos quais eu me lembro todos. Eu ouço cada um dos nomes em minha mente. Eu os repito, como uma oração, todas as noites. Eu me lembro também de cada um deles sendo anunciado pelo Auxiliador da Justiça, e eu me lembro do pescoço de cada um deles sendo rasgado, assim como de suas esposas ou maridos, que também haviam cometido um Crime ao não denunciá-los.
Eu assisti a tudo aquilo, com vontade de erguer minha mão e também dizer que havia cometido um Crime. De me declarar culpado. De andar até a guilhotina e deixar que arrancassem minha cabeça.
Porque tudo aquilo era culpa minha.
Se eu tivesse fechado os olhos e deixado que a morte viesse, talvez eles estivessem vivos...
- Eram do grupo da agricultura. Mas as coisas já não iam muito bem fazia tempo.
Despertei, sem me lembrar do que ele estava dizendo no início.
- Como é trabalhar na agricultura? – perguntei, tentando me envolver na conversa.
- É bastante chato. – Bruno continuou, sem perceber meu devaneio, ou apenas fingindo não perceber – Mas pelo menos temos bastante ar para respirar, e podemos nos mover pelos campos. Não me imagino fazendo outra coisa, trabalhar nas minas deve ser muito pior. Ouvi dizer que o metal está acabando, e eles precisam descer cada vez mais fundo. Dizem que algumas pessoas já morreram, mas ninguém parece se importar. Acho que ninguém se importa com mineradores, desde que o ouro continue subindo...
- E desde quando alguém se importa com a gente?
- Não sei quanto aos carpinteiros, mas nós da agricultura temos um grupo bastante unido. Se não fosse nosso Auxiliador, tenho certeza de que seríamos capazes de viver tranquilamente em uma comunidade agrícola fechada e mandar todos do governo à merda.
- Não somos carpinteiros, somos marceneiros.
- Que diferença faz? É tudo a mesma porcaria. Arranjam um toco de madeira podre e fazem um banquinho. É só isso que vocês sabem fazer.
- E você por acaso consegue fazer um banquinho, catador de estrume?
Ele riu. Sorte a dele por levar na brincadeira, porque eu teria quebrado seus dentes sem remorso algum.
- Duvido que você seja capaz de fazer algo mais refinado do que móveis mofados. – ele provocou, olhando-me fundo nos olhos.
- Por exemplo?
- Por exemplo, artesanato. Duvido que você seja capaz de esculpir algo bonito e delicado.
- Me mostre, e eu faço.
Ele retirou um pedaço de papel e um lápis do bolso, e começou a riscar alguns padrões. Eu me aproximei, olhando com curiosidade para as figuras sem sentido que ele desenhava.
- Iago, do grupo dos marceneiros! Eu te desafio a fazer isto! – ele proclamou, rindo da própria piada estúpida, me estendendo o papel.
- O que é isso?
- É um jogo. Se chama xadrez. E se você conseguir fazer, eu prometo que vou te ensinar a jogar.
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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...