Caminhar por algumas horas é fácil.
Caminhar por quatro dias me levou ao meu limite.
Caminhar por uma semana inteira, sem comida, bebendo água de poças escuras, debaixo de um sol insuportável, foi o suficiente para roubar totalmente o que restava de minha sanidade. Foi por isso que eu achei que estava delirando quando vi a moto caída no acostamento.
Você só pode estar de brincadeira...
Passei reto. Desviar o caminho e me abaixar para sentir minhas mãos mergulharem no vazio de minha loucura seria perda de tempo, e eu já não tinha muito tempo.
Tenho certeza de que, se fosse alguns séculos antes, haveria pelo menos dois ou três abutres me rondando. Mas, graças ao nosso amor por guerras, eles estavam praticamente extintos em todos os lugares.
Bem feito para os imbecis.
Como se eu tivesse algum direito de rir dos abutres... Eu mesmo estava em extinção. Eles estavam melhores do que eu nesse momento, porque pelo menos morreram sem saber que morreram, enquanto eu estava bastante consciente.
Lá vai o mundo mais uma vez... Tentando me comer.
De novo e de novo e de novo e de novo...
Vamos ver até onde ele aguenta.
Por que saiu daquela biblioteca, idiota? Aonde pensa que vai chegar?
Quanto tempo acha que seus pés esqueléticos vão aguentar pisando descalços sobre o asfalto quente? Quanto tempo acha que seu estômago vai aguentar comer grama antes que ele te devore por dentro? Quanto tempo até que um daqueles cretinos resolva tomar a estrada em seus carros blindados que explodem para vir fazer na sua cabeça um buraco idêntico ao de Laura?
Quanto tempo, Iago?
Eu não sei. Quanto tempo, Dantálion?
Você não tem tempo. Esqueça.
Eu já nasci sem tempo.
Então está com medo de perder o quê?
Não quero morrer como um idiota.
Então não seja um idiota. Olhe de novo.
Olhei de novo, e a moto continuava lá. Sólida como uma ilusão.
Você não vai me enganar desta vez.
Quando foi que te enganei?
Lá atrás. Com aquela maldita pedra. Quase quebrei todos os dentes.
Ele riu.
Desgraçado.
A única pessoa que está te enganando é você mesmo.
Me deixe em paz.
Nunca.
Respirei fundo. Aquela conversa não me levaria a lugar algum.
Virei para trás e comecei a voltar.
Olhei com pena para a moto ridícula que estava a meus pés. Chutei a lataria.
Sólida.
Se você estiver me enganando, eu juro que vou te matar.
Se eu estiver te enganando, você vai morrer aqui mesmo.
Ergui o metal do chão. Era pesado. Quase pesado demais para meus braços doloridos e trêmulos.
Sentei sobre ela e fechei os olhos enquanto segurava a ignição.
Se você estiver me enganando...
O motor rugiu.
Ainda não está convencido?
Nem um pouco.
Melhor abrir os olhos, ou vai acabar batendo a cabeça de novo.
Abri os olhos, encarando o horizonte com a firmeza que minha morbidez permitia.
Depois dele, meus maiores pesadelos me aguardavam.
Você realmente não quer me deixar morrer, não é?
Não ainda.
Acenei, trincando os dentes.
Vamos acabar com isto.
E foi assim que a estrada quis me comer, mas fui eu que comi a estrada.
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O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia Dantálion
Science FictionAntes de Dantálion, havia Iago. Tendo presenciado a execução cruel dos pais e carregando na pele as marcas do sofrimento, o menino precisa encontrar em si mesmo a força para decidir seu destino: fugir e esquecer o passado, ou buscar a vingança que c...