Surdo

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- Acabou a morfina de novo?! Não acredito nisso! Eu mandei vocês irem buscar mais semana passada, seu bando de inúteis! Se ele morrer, a culpa é toda de vocês!

Aquela voz não me era estranha.

- A guarda estava rondando a fronteira, não pudemos sair.

- Isso não interessa! Vocês precisam dar um jeito! Onde estão os antibióticos?! Não me digam que acabaram também! Porque, se tiverem acabado, ele morre hoje!

- Estão ali no armário.

- Está esperando o quê? Vá buscar, rápido!

Algo gelado em meu braço. Pelo menos os braços eu podia sentir.

- Você está consciente, garoto?

Assim que sua voz caiu para um tom suave, eu a reconheci.

- Vero?

- Sim, sou eu. Diga o que está sentindo.

- Mais fácil dizer o que não estou sentindo. Não estou sentindo as pernas.

- Como você pode rir num momento como este?! Você é louco!

Eu estava rindo?

- Você quebrou as duas pernas. Vai precisar ficar imobilizado por sessenta dias, no mínimo. O problema – eu senti suas mãos tocando meu peito – é que você levou muitas pancadas no tronco e na cabeça, e pode ter algum sangramento interno. Vamos torcer para que isso não aconteça. Se acontecer, não haverá muito que poderei fazer por você.

- Não gaste seus remédios comigo, Vero. Eu vou morrer.

- Pode ter certeza de que eu não os gastaria se soubesse que vai morrer.

Ele passou um pano com água fria em minha testa. Só então percebi o quanto estava ardendo de febre.

- Você poderia se esforçar mais para ficar vivo. – ele murmurou enquanto continuava umedecendo meu corpo – No que estava pensando? Você não poderia derrubá-lo sozinho, e mesmo que o matasse, eles te pegariam depois. O que foi que se passou nessa sua cabeça cheia de ideias loucas?

- Eu não aguentei mais.

- Poderia ter fugido, poderia ter me procurado.

- Estou cansado de fugir, e estou cansado de depender dos outros.

Ele secou as lágrimas que eu nem sequer havia percebido que brotavam de meu rosto.

- Eu só queria tentar, pelo menos. Só queria sentir que eu não sou um covarde.

- Zelar pela própria vida não é covardia.

- E deixar que monstros matem crianças não é zelar pela própria vida.

Eu me lembrei.

- Vero... A execução?

- Já se passaram dois dias, Iago. Você estava em coma.

- Então eles...

- Sim.

A fúria explodiu em meu peito. Eu me retorci sobre a maca, arrancando acessos e outros equipamentos que se prendiam a mim. Uma onda de dor subiu por minha coluna, e eu a reprimi.

- Você é um covarde! Como vocês puderam não fazer nada?! Você devia ter impedido isso! Você é um maldito, Vero! Todos vocês! Eu vou acabar com vocês, um por um!

Ele e mais alguém se lançaram sobre mim, tentando me forçar a deitar. Meu corpo doía insuportavelmente.

- Iago, acalme-se. Você vai se machucar.

O Filho da Rebelião (Completo) - Livro II - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora