Capítulo 1 - A lâmina e os rubis.

115 15 115
                                    

A lâmina cortou a brisa gélida do sereno da noite, assim como rompeu a artéria da garota, enquanto seus olhos mudavam de fúria para horror. Milhares de gotículas de rubis se espalharam pelo ar, chão, assassino, e vítima. Molhando, e adornando, com aquelas cores vibrantes, tanto a roupa da menina quanto a máscara branca de veneza daquele asqueroso, e belo, ser. Aquela criatura magra, com roupas de corte fino, e a máscara que usava, aparatada com formas de ondas. Os olhos eram difíceis de se enxergar, escondidos por trás do fino véu colocado nos orifícios oculares. Detalhes esses, que agora estavam paramentados com as gotículas daquele óleo ferroso. A garota estava no chão tremendo violentamente, tossindo e cuspindo jatos rubros, os quais junto com a pequena correnteza que saia do corte, formavam uma poça crescente abaixo de sua cabeça. Ela não estava sozinha.

Marie estava ajoelhada segurando a fenda da pequena cascata morna que escorria do pescoço da amiga, seu corpo tremia, enquanto pequenas lágrimas escorriam pela sua face. Ela podia sentir a carne mole, quente, e úmida, da amiga em seus dedos. A garota no chão revirava os olhos e produzia guturas. Suas tranças se encontravam com o sangue no chão e juntos formavam o que pareciam ser teias, como em uma obra de arte. A pele negra era decorada pelas gotas purpúreas espalhadas como sardas em seu busto. O foco de seus olhos castanhos era o rosto de desespero da amiga que a socorria. Mal sentia seu corpo, apenas sua pele cortada se mexendo. Conforme a cabeça sacolejava, a dor explodia análoga a um corte de papel por todo aquele lado do pescoço. Sentia o frio arder o corte e as camadas de pele, sentia o sangue sair grosso, oleoso, e quente. Não tinha como pronunciar palavra alguma, a hemorragia logo invadia sua boca. As narinas ardiam com o cheiro de ferro e o fluído que subia. Estava sendo estrangulada pela densidade . Sentia-se caindo, a visão era a de um túnel cada vez mais e mais escuro.

A garota que tentava salvar a amiga começou a sentir o pescoço queimar, uma pressão no peito se aflorava enquanto aos poucos perdia a sensibilidade do corpo. O cheiro de carne exposta incendiava em seu nariz, do fundo de sua garganta sentia o gosto ocre subir violentamente em contrações que a apunhalavam no diafragma, e rasgavam sua garganta. A vítima a encarava enquanto os braços e pernas ainda dançavam em espasmos, porém já não mais lutava pela sua vida. Naquele instante a socorrista estava por sua conta. "Adeus, Mirtho".

Os cabelos castanhos da garota se elevaram junto de seus olhos embebidos em ódio. Engoliu o lanço. Aos poucos se formou um rugido sanguinário do fundo de sua garganta. Os ombros se lançavam para trás, enquanto o tórax descia. Passou a se apoiar apenas nos peitos dos pés. A boca sulcou em dentes rijos. Primeiro pensou em apenas saltar sobre o assassino. No entanto, a máscara foi descida graciosamente pela mão enluvada, desde a parte traseira que se fixava na nuca dele. As pontas negras repicadas de seu cabelo dançaram com o movimento do objeto, as íris castanhas de falcão, que adornavam os olhos pincelados, apareceram, assim como a pele branco amarelada, o nariz fino, simétrico, e o sorriso malicioso de lábios pequenos. Valquíria. Quase que involuntariamente os olhos de Marie receberam o reflexo da faca envolta em fitas vermelhas, o chão cintilou em cacos de variados tamanhos à sua volta. Seu corpo descontraiu. Seus pulmões voltaram a se encher completamente com o ar gélido da noite. Cada corte em seu corpo reviveu com a brisa fria, como se lentamente sua carne queimasse em labaredas e escorregasse no líquido pastoso vinagre. O peso da sua vida caiu sobre os ombros. Tremia fraca. E não conseguia evitar de olhar para a saída.

Oi, Ma, tudo bem? ㅡ Marie só pensava em sobreviver, saber que era Valquíria o tempo todo já não era de grande efeito. ㅡ Como é saber que eu controlei sua vida? ㅡ A garota só precisava esperar a assassina abaixar a guarda, mas sentia um ódio tão intenso, Valquíria tinha arruinado sua vida.

POR quê?... ㅡ Seu grito ao invés de trovoar foi sufocado pela dor, mas ela fez questão de manter contato visual ㅡ Por quê fez isso com a gente?... ㅡ Inclinou a cabeça permitindo que achasse um caco escondido embaixo do calcanhar da amiga, perto da assassina. Mesmo a visão turvando com as lágrimas, voltou os olhos para a saída e retornou a observar a loba à sua frente. ㅡ Por que tudo isso? ㅡ Os olhos da mulher ensandeceram. Agora ela ria. Endireitou a coluna, virou o tórax lentamente olhando para a única saída.

Anamnese.Onde histórias criam vida. Descubra agora