Marie puxou debaixo da cômoda os tênis surrados. Ajoelhou-se e alternando as pernas, amarrou os cadarços. Olhou-se no espelho, bagunçou os cabelos úmidos um pouco mais. Perfeito. Podia ver o reflexo do apoiador para casacos e um dos diversos quadros de sua mãe. Esse era de uma gaiola aberta com um beija-flor a adentrando. Ela sempre o apreciou. Dirigiu os dedos para a maçaneta acobreada. Um mundo refrescado por uma ventania gelada se mostrou. Não era exatamente tarde, mas o céu estava nublado, e a luminosidade era meio escura já. Saindo de trás da cerca viva, atrás das grades do portãozinho cinza escuro estava Ricardo, seu pai. Ainda que visivelmente exausto, ele expressava um sorriso caloroso. Ela sempre sentiu-se segura com aquele sorriso que lhe aquecia o peito. Era sincero. Era de puro amor.
Oi, filha, tudo bem? ㅡ Ele sempre voltava com o pescoço suado, os olhos fundos. Os ombros arqueados.
Tudo sim... ㅡ Ele percebeu.
Tá tomando um ar fresco, Ma? ㅡ Ela olhou para o canto e sentia o aperto da vergonha. Ela queria cozinhar, mas não conseguia entrar na cozinha. Não por enquanto.
Sim, eu... Eu comecei a cortar umas verduras e ia esquentar uma lasanha, mas precisei espairecer um pou-.
Tudo bem, eu só vou guardar as minhas coisas e já desço pra preparar a janta, descansa um pouco, amor. ㅡ Ele sorria. Um sorriso cansado, mas carinhoso. Ele ainda sorria.
Eu tava pensando em andar um pouco. ㅡ Eles agora estavam frente a frente no espaço da porta. Marie queria que seus ombros a engolissem.
Isso é ótimo, Ma. ㅡ Ele agora estava um pouco mais radiante, Marie nunca saia da casa, aquilo era um progresso enorme. ㅡ Bem, já vou entrando, até daqui a pouco, docinho. ㅡ Ele beijou demoradamente sua testa. Marie só queria deixar toda a culpa escapar pelos olhos.
Marie fechou a porta. Respirou fundo. Foi em direção ao portão. Há quanto tempo não sentia o ar puro não rodeado por paredes? Há quanto tempo não sentia as grades frias do portão em seus dedos? Passou os dedos pela tranca. Olhou da direita para a esquerda procurando por pessoas. Não havia ninguém. De longe ouvia um carro vindo. Estava realmente frio. Era fim de tarde. O céu estava levemente rosado. Respirou fundo toda aquela pureza. Não pôde deixar que uma pequena e lenta lágrima escapasse, mas escapou. Abriu o portão e saiu. Olhou para a casa enquanto ia pelo caminho da direita. Continuou andando. Passando calçadas, atravessando ruas. Não demorou até ouvir um grupo barulhento chegando. Estava na esquina de uma encruzilhada. À sua esquerda, na rua que descia, viu o grupo de jovens.
Era um grupo composto em sua maioria por meninos. Dois bem altos. Um mediano. Um pequeno, e uma menina alta. Eles riam enquanto se xingavam. Marie ficou observando de braços cruzados, em parte porque a blusa sozinha não a esquentava, e em parte para que isso servisse de aviso para eles. Um menino alto e loiro, com o nariz comprido e o queixo reprimido então lançou:
E aí vagabunda, vai dar pra quem hoje? ㅡ A menina virou para ele.
Com certeza, não pra você, seu bosta. ㅡ Todos riram.
Mas nem vai dar uma chupadinha no canudinho do Luciano? ㅡ Disse o menor. Era gorducho, com a pele mais escura e tinha barba somente no pescoço.
Vai toma no seu cu, Le. ㅡ Ela disse sorrindo.
Olha o jeito que você fala comigo, cachorra. ㅡ Em seguida ele deu um empurrão nela, que cambaleou sorrindo. E voltou-se para ele.
Me empurra de novo que te quebro os dentes, seu lixo. ㅡ E devolveu um tapa estralado no braço dele enquanto todos riam. Já estavam no meio da rua quando perceberam Marie. Um dos mais altos olhando pro celular falou por cima dos xingamentos do moleque.
Oloco, eu num dexava isso, hein... ㅡ Levantou a cabeça da tela sorrindo. Usava um moletom com touca, preto. Viu a mulher parada na esquina. ㅡ Eita porra.
Marie sabia exatamente sobre o que se tratava o silêncio que passou a reinar ali. Ela era vista como uma covarde pela cidade. Um fantasma que trazia vergonha e azar. Os olhares graves daqueles jovens fixos nela. O silêncio que desconfortava as costas e o pescoço. Ela sabia que rumores na cidade diziam que ela era cúmplice da irmã. Outras pessoas diziam que ela era, na verdade, a assassina, e Valquíria foi mais uma vítima. Também, certa vez, chegou aos seus ouvidos que algumas igrejas estavam propagando que ela "vivia em pecado" e que tudo que aconteceu foi um castigo divino. Ainda, que, alguns cultos diziam que aquilo era obra do demônio. Marie sentiu os braços se eriçarem e a pele doer levemente. Abraçou-se. Os jovens estavam perto o suficiente. Todos olhavam e desviavam o olhar várias vezes. Menos um olhar. Aquele olhar. A menina no meio deles a olhava fixamente, mas não alarmada, não com desprezo. Era um olhar de cúmplicidade. Dor. Era triste e mesmo assim firme. Forte. Era um olhar de olhos escuros que repuxavam para uma consciência mais profunda. Era um olhar como o de Marie, mas determinado. Cheio de vida. O grupo passou. Não demorou até voltarem a falar em um tom exagerado e a se empurrarem e gargalharem.
O que aquela menina passava? Marie não deixava de se perguntar enquanto voltava para casa. Seu nariz querendo escorrer. Como ela deixava que a chamassem daquilo sem realmente se impor? Porque faziam aquilo com ela? Qual era a história daquela garota tão bonita, com aqueles olhos... Olhos que sugariam se olhasse por muito tempo. Olhos que se sugassem, talvez jamais devolveriam a consciência da pessoa de volta. Olhos perigosos. Olhos de ressaca. Aquele olhar. Marie precisava ajudar? Como Marie ajudaria? Ela não sabia, mas queria e sentia-se culpada, contudo, sabia que qualquer interferência naquele momento geraria mais alarde que o necessário.
O que os cidadãos espalhariam? Ela sabia como eles podiam ser. Afinal, trabalhava escrevendo artigos para o jornal local por meio de um pseudônimo e só ela sabia o número de informações distorcidas que chegavam para ela sobre um certo assunto. Era uma cidade perigosa. Ela sabia que aquela menina estava presa nessa teia tóxica, e queria ajudar. Mas... como? Estava já adentrando na casa quando sentiu o cheiro da comida sendo posta. Aquele era seu recanto. Ela só queria saber se a menina tinha um também. Ela sentia-se protegida também?
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Anamnese.
Mystère / ThrillerO jogo de morte dos assassinos Veneza e Monstro, de três anos atrás, marcou para sempre a vida de quem vivenciou os casos. Agora, com a morte de uma adolescente, todos se perguntam se os horrores do passado estão voltando para os assombrar.