Brincar na sala era bem legal para a Valquíria. A sala sempre tinha uma brisa gostosa que refrescava bastante, e tinha muito espaço para que todos os brinquedos ficassem bem espalhados e ela pudesse continuar as histórias que contava, sem ter que ficar tirando um de cima do outro. Marie e Mirtho não gostavam muito de brincar com Valquíria. Elas gostavam de ficar no quintal correndo em volta da árvore, sendo elas mesmas as personagens. Às vezes as histórias eram tão longas que duravam dias afim. E como de vez em quando os pais de Mirtho não podiam levar ela, ou a mãe de Marie e Valquíria não podia ir buscar, essas brincadeiras tinham que esperar.
Outra coisa que Valquíria gostava era de andar no bosque perto de casa. Seja de manhã ou de tarde. Seu pai a levava sempre aos finais de semana, depois de ir à padaria. O bosque ficava no caminho e como Marie preferia ficar vendo desenho e Carlos era muito pequeno, aquele momento era só de Valquíria e papai. Era tão gostoso ouvir as folhas das árvores balançando, o barulho do riacho que corria logo abaixo, o barulho dos passarinhos. E Valquíria sempre aprendia alguma coisa muito interessante. Seu pai sabia de muita coisa, ele era muito inteligente. E que bom que ele só ensinava ela, porque Marie era muito chata para essas coisas.
Às vezes, Valquíria pedia para sua mãe para ir sozinha lá, e como nos finais de semana sempre tinham muitos vizinhos por perto, sua mãe deixava. Desde que fosse por pouco tempo. Só uma voltinha e já deveria voltar. E hoje ela queria muito, muito, muito. Seu pai estava cansado demais de tanto trabalhar. Marie e Mirtho não paravam de gritar e ela queria sair para ouvir o vento nas árvores, os passarinhos. Queria pisar na grama, talvez molhar as mãos no riacho, ver as folhas que nadavam, talvez alguns peixes.
Foi até Evelyn, que estava ninando Carlos na outra sala. No rádio tocava uma música que era só uns sons que deviam dar sono no seu irmão, e talvez na sua mãe também, porque ela estava com a cabeça caindo, e os olhos piscando em intervalos demorados. Ela viu Valquíria se aproximar e sorriu. Sua mãe estava calma nesse dia, isso era difícil.
Mamãe, posso passear? ㅡ Evelyn fechou o sorriso, mas seus olhos ainda eram carinhosos.
Vai ser rapidinho? ㅡ Valquíria balançou várias vezes sua cabeça sorrindo. ㅡ Então tudo bem. ㅡ A menina fez que ia sair. ㅡ Mas ó, nada de demorar, se não eu mesma vô te buscar, entendido?
Entendido, mamãe! ㅡ Valquíria saiu correndo até a porta.
A luz do sol banhava as copas das árvores e fazia ela sentir seu peito encher de calor. O vento passava por entre os troncos das árvores, e refrescava sua pele. O som das folhas dançando faziam seu corpo parecer mais leve, Seus passos na grama, e os sons dos seus pés raspando deixavam ela feliz. Ao fundo ela podia escutar o som do riacho, e ela tinha certeza que conseguia sentir a temperatura da sombra e da água apenas pelo som.
Valquíria tinha visto os vizinhos brincando com os filhos no parquinho. Eles pareciam felizes, pais sorriam com as crianças nos brinquedos, alguns conversavam, algumas crianças saiam correndo pelo lugar e os pais avisavam para não irem longe. Valquíria passou por eles como um fantasma, Ricardo a ensinou a andar a partir dos calcanhares, para fazer menos som o possível e não assustar os bichinhos.
Ela continuou andando por baixo das sombras, olhando ao seu redor. Era tudo tão verde, era tudo tão vivo, era tudo tão lindo. O silêncio fazia ela ficar bem consigo. Era pacífico. Ela podia observar tudo com calma, ela podia explorar o mundo. Não tinha a Marie para ficar pedindo as coisas para os seus pais. Não tinha o Carlos para chorar. Nem a sua mãe para brigar com seu pai, por qualquer que seja o motivo que fazia ela querer ficar brigando.
A menina escutou um passarinho que fazia um "cuuuuow-cu-cu-cuooow", e esse som a fez se sentir triste. Ela já tinha escutado antes com seu pai, mas ele nunca tinha dado atenção. Ele preferia explorar possíveis pegadas, e tentar ver os passarinhos no chão. Ela tentou procurar ele em cima das copas, mas ele demorava para fazer o som triste de novo, e ela não conseguia achá-lo. Ela foi andando por meio das árvores e se afastando cada vez mais do caminho que ela sempre fazia. Ela passou por trás do parquinho que estava longe, voltou, subiu mais um pouco e desceu até o riacho. Ela subiu mais um pouco e escutou algo batendo nas folhas. Seria algum besouro? Valquíria seguiu o som, tinha alguma coisa ali, e ela queria descobrir.
E assim ela achou um passarinho. Ele era pequeninho. Suas penas pareciam ser fofinhas no peito, e suas penas das asas eram finas. Seu bico era meio longuinho e redondinho. Seus olhos eram redondinhos e escuros. Ele piava mais alto, conforme Valquíria abaixava-se para o ver melhor, e seu peito não parava de subir e descer. Ele tentava se arrastar para longe, mas não conseguia se virar e ficar de pé. Uma de suas asinhas batia mais que a outra. Essa outra asinha ficava mais esticada. Parecia estar machucado. Ela queria ver. Ela queria tocar. Ela queria saber mais.
Ela o tirou do chão, era tão levinho, e tão pequenino, que cabia nas palmas de sua mão. Valquíria acariciou seu peito felpudo, e como tinha imaginado, era muito gostosinho. Ele a olhava parado. Ela sentia seu peito se encher de ar e esvaziar muito rápido. Seus olhinhos bem pretinhos a encarando. Ela queria apertá-lo, mas decidiu passar o polegar na asinha machucada. Ele não conseguiu mexer muito ela. Quando Valquíria a tocou, ele tentou dar pulinhos para sair.
A menina sentiu uma onda correr do machucado até a ponta de seus dedos. A eletricidade encheu seu peito, aquilo fez seu rosto rasgar em um sorriso de plenitude. Aquilo era bom, era gostoso. Ela pressionou uma parte inchadinha e o passarinho soltou um pio alto. Mas ela não queria parar, quanto mais apertava mais gostava, e quanto mais força fazia, mais o passarinho se debatia, mas ela não o deixaria escapar. Ela se sentia tão bem. Tão feliz. Mas não era o suficiente. E se ele tivesse mais bolinhas para apertar na asa?
Ela correu seus dedos pela parte superior e chegou até a extremidade da asa. Um pouquinho antes da ponta mesmo, ela sentiu um ossinho. E o apertou. Apertou. Apertou. E estalou. Um estalinho que percorreu por todo seu corpo e adormeceu suas mãos, pés e um pontinho na sua nuca. O passarinho soltou mais um piu e ela queria mais. Sentia um ponto de seu peito ficar grande. Gigante. Mas queria mais. E assim o fez. E quanto mais fazia, mais o passarinho piava, cada vez mais alto, cada vez com menos intervalos. Quando terminou com uma asinha decidiu ir para a outra que estava inteirinha. E continuou. O passarinho se debatia, e piava, e tentava pular, e ela o segurava e ele piando. Valquíria mordia seus lábios. Seus olhos estavam vidrados. Aquilo era bom. Muito bom. Bom demais. A menina não tinha mais ossinhos para estalar, o passarinho estava parado, seus pios tinham parado, seus olhinhos abriam e fechavam lentamente, seu peito ainda estava subindo e descendo. Valquíria sentia.
A menina estava satisfeita, era como se tivesse tomado café da manhã, aquilo tinha a alimentado de alguma forma. Mas ela não conseguiria mais tirar nenhum estalo do passarinho. Valquíria então o deitou carinhosamente no chão. Mas ele não se mexia. Era como se estivesse tentando dormir. Mas ele devia ser como os outros passarinhos que não dormiam naquela hora da manhã. Ele possivelmente estava morrendo. Papai havia a ensinado que às vezes não era possível salvar os bichinhos, então estava tudo bem se tivessem que ajudá-los a morrer. E aquele era o caso, para Valquíria.
Ela não sabia o que fazer, então achou que tudo bem se usasse o sapato. Posicionou a sola contra a cabecinha dele. Ele estava molinho. Então Valquíria começou a apertar, suas patinhas deram algumas mexidinhas, e ela continuou apertando. Então ouviu um estalo mais alto que os outros, um grande "ploc", e depois sentiu algo pegajoso, como se fosse uma goma de chiclete. Limpou a sola na grama, e viu a cabecinha amassada. Um pouquinho de sangue saia, mas bem pouquinho. Inspirou fundo e saiu para o caminho de volta.
Chegando ao final do caminho, viu que umas pessoas viram ela saindo. Ela conhecia eles. Alguns eram pais de amiguinhos da Marie. Eles acenaram e ela também. Seguiu o caminho para casa. O sol estava mais quente, podia ver ondulações na rua. Chegou no portão de casa. Limpou os tênis no carpete, como papai sempre fazia depois de voltar do bosque. Entrou para a casa e mamãe não estava mais na poltrona. Seguiu até a cozinha para beber água. Marie e Mirtho deveriam estar tomando banho ou brincando no quarto.
Escutou passos na escada e saiu para ver quem. Era Evelyn. Ela já não sorria mais. Olhou para Valquíria nos olhos, e continuou descendo. Veio até Valquíria, a menina sorria, isso poderia deixar mamãe feliz, afinal ela sempre gostava de ver Marie e Carlos felizes. Ela parou de frente para a menina e farejou. Pegou as mãos da menina e correu o indicador nas palmas. Valquíria normalmente se assustaria, mas estava tão satisfeita. Evelyn desceu mais um pouco e inspirou profundamente. Então olhou nos olhos da menina, apertou bem as pálpebras, olhava cada canto do rosto dela.
À partir de amanhã você vai aprender a pintar comigo no ateliê. ㅡ A menina sentiu sua espinha tremer.
Mas eu gosto do balé, e só do balé, mamãe.
Você vai fazer balé, e aprender a pintar, ponto final.
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Anamnese.
Mystery / ThrillerO jogo de morte dos assassinos Veneza e Monstro, de três anos atrás, marcou para sempre a vida de quem vivenciou os casos. Agora, com a morte de uma adolescente, todos se perguntam se os horrores do passado estão voltando para os assombrar.