Depois do funeral de Victor, Marie voltou para a casa junto de seus pais e Carlos. Seu irmão não deixou de segurar suas mãos, o que causava desconforto, mas era um carinho que há tempos ela não recebia, ele estava se esforçando para deixá-la melhor, ela não negaria isso ao menino. Evelyn estava mais quieta do que nunca, talvez a memória de Valquíria tivesse se reavivado com as mortes e a volta do Monstro. Ricardo parecia inquieto, ele estava assim desde a manhã em que se deparou com Evelyn na sala, e depois começaram a discutir na frente de Marie e Carlos. Naquele momento, dentro do carro, eles eram uma família calada, como se suas cordas vocais tivessem sido cortadas.
Valquíria pesava em cada um deles, Marie podia ver isso agora. Foram três anos inteiros que eles sofreram junto, ainda que de formas separadas, e pior, Ricardo e Carlos sofriam por ela quando... Quando ela estava como estava no hospital. Mutilada, em crise. Sua irmã era um fantasma para eles, e que irônico seria se esse mesmo fantasma não tivesse juntado eles, assim como separou. Sim, eles estavam separados. Carlos cresceu em três anos, e Marie o viu mais naquele mês do que nos outros anos todos. Evelyn tia ido embora. Ricardo ficou solitário, e teve de arcar com as consequências de tudo.
Seu pai era uma pessoa exemplar, Marie pelo menos o via assim. Sempre calmo, carinhoso, atento. Em três anos que ela teve tantos surtos ele jamais levantou a voz, jamais foi bruto, sempre cuidou muito bem dela. Seus olhos haviam se tornado tristes e vazios, seu sorriso significava tudo, menos felicidade. Seus passos ficaram lentos, pesados, pausados. Ricardo era um ótimo advogado, trabalhava horas e horas por dia, e, no fim, ainda cuidava de Marie e Carlos, enquanto Evelyn desapareceu.
Evelyn estava ali, logo à frente, Marie podia sentir seu perfume doce que parecia exalar de seus cabelos ondulados, mas de certa forma firmes, fixados nas mínimas ondulações que pareciam um oceano vermelho visto à dez metros de altura. Era estranho ver aquela figura presente novamente em sua vida, mas também não era. Marie sentia-se culpada por sentir conforto na presença daquela mulher agressiva e barulhenta. Marie também não entendia muito bem os motivos dela ter voltado, dizia que estava lá para ajudar a cuidar dela e Carlos.
Quando era para cuidar deles ela não estava lá, será que isso era o que chamam de consciência pesada? Podia ser. Marie não lembrava de sua mãe ser assim antes. Quando ela era criança, Evelyn era como Ricardo, ele era o ausente, e tudo mudou, do nada. Começou com o ateliê e depois foi ladeira abaixo. "Cala a boca!". Como ela havia se esquecido disso? Valquíria do lado de fora, aos prantos, e os gritos vindos da porta. "Ela não seria assim se não fosse por você!", gritou Evelyn, "Ela é culpa sua!". Marie se lembrava de sua mãe achar um absurdo a irmã não ter amigas, nem amigos. Mesmo assim, Valquíria era perfeita.
Finalmente chegaram na casa. Evelyn foi a primeira a descer e subir as escadas até a casa. Marie desceu com Carlos, Ricardo os seguiu. Ele estava dormindo na sala de televisão, enquanto Evelyn se apossava do quarto. Na verdade ela se apossava cada vez mais e mais da casa, Marie podia sentir com os olhos fechados onde sua mãe tinha mexido, cada ponto da casa, cada móvel, cada decoração, cada taco do chão. Evelyn se expandiu, se alastrou, seu caos tomava conta daquela casa. Era sufocante o quanto ela estava dando vida àquela casa. Marie a queria fora, Evelyn tinha escolhido ir embora, não? Não era errado não querer sua mãe lá. Evelyn estava subindo as escadas, Marie apressou o passo:
Mãe, precisamos conversar. ㅡ Evelyn parou no meio de um passo. Virou-se encarando Ricardo.
Pois não, Ma? ㅡ Marie tentou pressionar as juntas dos dedos contra a perna para estalar, mas isso só fez seu pulso fisgar dolorido.
E-eu acho que a gente precisa conversar... Eu, você, ㅡ Marie se virou e olhou para Ricardo ao lado de Carlos. Valquíria tinha a mesma altura que o menino. ㅡ e o papai. ㅡ Ricardo se ajeitou desconfortável, tentando não fazer contato visual.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Anamnese.
Mystery / ThrillerO jogo de morte dos assassinos Veneza e Monstro, de três anos atrás, marcou para sempre a vida de quem vivenciou os casos. Agora, com a morte de uma adolescente, todos se perguntam se os horrores do passado estão voltando para os assombrar.