Capítulo 51 - Monstruosidade.

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Ricardo andava de um lado para o outro entre as salas, a copa e a cozinha. Coçava a cabeça, esticava a coluna e olhava em relances para Evelyn. Ela fumava na varanda, de braços cruzados, se revezando entre o quintal e a sala. Observando a inquietação de Ricardo. A casa foi silenciosa nos últimos três anos. Agora parecia que eles esperavam a ligação confirmando que alguém internado faleceu.

Evelyn caminhou até a bancada do barzinho, pegou seu celular. Voltou sorrindo. Ricardo parou. Ficou observando em silêncio. Observando ela andar calmamente com o cigarro ainda em mãos até sua bolsa sobre o sofá. Ela bateu com o indicador na haste de papel e tabaco, cinzas fétidas caíram sobre o tapete. Ela as raspou com o pé, enquanto procurava algo dentro daquele saco de pano que escondia tanto.

Aconteceu alguma coisa? Eles tão bem? ㅡ Ela o olhou como se estranhasse.

Quê? Carlos está ótimo, se ocorreu tudo o que cronometrei. ㅡ Ricardo engoliu uma gota espessa de saliva.

Como assim? ㅡ Ela retirou um revólver prateado de cabo preto, colocou no sofá.

O que é isso, Evelyn? ㅡ A mulher riu. Sentou ao lado, colocou a bolsa no colo e começou a manipular com as duas mãos algo lá dentro.

Sabe, quando eu descobri que a Val teria essa... Fome, eu tentei suprimir isso ao máximo, e acho que consegui, mas também falhei. ㅡ Algo estalou lá dentro. ㅡ Vendo como Carlos foi útil hoje, tenho certeza que de certa forma fracassei com ela. Mas agora já está tudo bem. ㅡ Ela se virou para ele e puxou um colar prateado. Lâminas horizontais o formava. Ricardo perdeu a cor. Suas mãos tremiam e seus joelhos cederam. Os olhos fixos em Evelyn, aliviada? Ela sorria enquanto ajeitava o colar. ㅡ Bonito, não?

Vo-você...

Sim, Ricardo, mas não foi nada como pintam. ㅡ Ele continuou estático no chão, fechou a boca. ㅡ Valquíria teve a ideia idiota de fazer o que ela começou a fazer, acontece que alguém me mandou tudo assim que recebemos aquela primeira ligação, e não foi pouca coisa, mas, sabe? Eu tinha fome. Eu podia jogar as cartas na mesa, podia denunciar ela, fazer o que uma mãe deveria fazer, o que uma pessoa normal faria, mas eu tinha tanta... Fome.

Ela se levantou com o revólver em mãos e se sentou com Ricardo. Parecia leve. Pegou o celular e o entregou. Ainda trêmulo, Ricardo começou a deslizar o dedo pela tela, e lá tinha todas as informações, fotos, locais, horários. Um dossiê completo. Todos os nomes, todas as ligações, todas as vidas. Tudo.

Aquele tal de Fantasma é a mesma pessoa que me enviou antes os detalhes mais antigos que você viu aí. Tenho certeza. ㅡ Ricardo levantou os olhos avermelhados, tristes, lustrosos. ㅡ Mas agora acabou... Já não temos mais o que comentar, não acha?

Nossa filha-

Sua filha, Ricardo... Não... Suas filhas. ㅡ O sorriso dela morreu por um momento. ㅡ Fracas e maleáveis. Como você. ㅡ O rosto de Ricardo começou a enrugar em um olhar de raiva. ㅡ Digo, Marie era forte, era tudo, era tanto, mas Valquíria tirou ela de mim. Mas pelo menos restou Carlos... Ele sim. Nesses últimos tempos tínhamos nos falado bastante, e hoje você pode ter certeza que ele mostrou que vale a pena. Meu menino-

Cala. A. Boca. ㅡ Ricardo conseguiu arranjar forças.

Oh... Você quer acabar comigo? Me bater? Me xingar? ㅡ Ele retesou a postura que estava prestes a saltar nela. ㅡ Tenho uma ideia melhor. ㅡ Ela levantou a arma.

O quê? ㅡ Ricardo parecia alerta, indefeso. Encurralado.

Nesse revólver eu tenho exatamente uma bala. ㅡ Ela desmontou o tambor e mostrou uma única bala. A colocou no lugar. Rodou aquele rolo prateado e fechou. ㅡ Temos a chance de uma em seis pra levar o tiro. ㅡ Ela disse apontando para a própria cabeça.

NÃO! ㅡ Gritou Ricardo assim que ela puxou o gatilho.

Agora são cinco. ㅡ Ela sorriu, mas logo seu rosto se tornou melancólico. ㅡ Quem perder tem que viver relembrando esses últimos anos até o fim. ㅡ Ricardo a olhou, o coração diminuindo dolorosamente em seu peito.

A gente nã-

Cala a boca e puxa o gatilho. ㅡ Ela estendeu a arma para ele.

Nunca que eu nos imaginaria aqui. Assim. ㅡ Ele inspirou. Puxou.

Agora são quatro. ㅡ Ela pegou a arma. ㅡ Não pense nisso agora. A gente fez o que conseguiu e como conseguiu. ㅡ Olhou em volta até seus olhos encararem os dele. ㅡ Mas isso é tudo.

A Marie...

Sim. Ou pelo menos era pra ser. ㅡ Puxou.

Três. ㅡ Ricardo retomou a arma. ㅡ Não tem muito o que ver daqui adiante, né? ㅡ Ela sorriu docemente e pôs a mão em sua perna.

Desde aquela última vez, Ricardo. ㅡ Puxou.

Evelyn se levantou. Pegou mais um cigarro em sua bolsa, sentou-se na mesa da copa. Cercada pelos vidros. Nos ouvidos ainda ecoando o som do disparo. No olfato o cheiro forte de ferro sendo substituído pelo tabaco. Pegou o celular. Discou para a delegacia. Encerrou a ligação. Nem um movimento sequer, além da fumaça. Ela conseguiu impedir que Valquíria tivesse seu objetivo alcançado uma segunda vez. E mesmo ela perdeu. Que existência miserável para um monstro.

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