Capítulo 8 - O corpo.

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Sentiu a garganta fraca ao tentar soltar um resmungo por conta do despertador. Sentia os olhos colados pela sujeira acumulada nas pálpebras. O corpo todo parecia envolto em tiras que impediam-na de se mover. Era cinco e meia. Embaixo dos edredons estava confortável. O quarto estava levemente mais fresco. Foi escorregando com as pernas para fora da cama, da qual caiu agachada, com um braço se apoiando na beirada. Levantou-se e mesmo sem enxergar foi para a cozinha tomar seu copo de água matinal. De volta no quarto, já se despiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Esfregava os olhos na frente do espelho, observando sua cara inchada. Puxou a cortina do box e deixou a água aquecendo. Voltou para o quarto pegar uma troca confortável e quentinha. Quando mergulhou sentiu-se renovada, conforme ia se lavando.

Terminou de se trocar. Dirigiu-se para a cozinha, pôs a água a ferver, torradas a tostar, pegou o coador e a garrafa, retirou da prateleira o pote com o pó de café. Garrafa embaixo, coador em cima, pó dentro, e a água fervendo mais um pouco. Com um pano pegou a leiteira e despejou o líquido escaldante contra o pó e o filtro; quase que imediatamente o aroma energético consumiu cada canto do apartamento. As torradas pularam, colocou-as em um prato. Buscou pela sua xícara favorita, colocou o filtro sujo dentro da pia, tampou a garrafa. Girou a tampa e estava pronto o receptáculo daquele ouro preto.

Naquela manhã de sábado, pensava apenas em seguir com seu ritual de yoga, depois assistiria algum filme ou série, ou filmes e séries. O café quente lhe aquecia o peito, era como se estivesse completa. As torradas em cima da pia em um prato pequeno, esperando serem cobertas com a fina camada de manteiga.

Sentou à mesa com as coisas. Entre terminar de comer uma torrada e dar alguns goles no café, seu celular tocou de dentro do seu quarto. O toque era uma série de bips seguidos que variavam em tom. Emergência. Carvalho estava chamando-a. Seu peito apertou por um momento. Cada um daqueles bips ressoava em seu ouvido. As sirenes vinham em mente, as luzes alternadas entre aquele vermelho vivo e azul gélido. O ar espesso com o aroma de morte. Com mãos e pernas trêmulas seguiu em direção à origem do som tenebroso. Atendeu.

Alô? Miranda? ㅡ A garganta amarrada, os olhos se enchendo em pânico.

Sim, comandante, sou eu.

Martins está à caminho, quero que você esteja o mais rápido o possível aqui. Uma garota desapareceu embriagada no carro de um estranho nessa madrugada, estamos enviando uma equipe de busca e outra equipe para entrar em contato com os familiares.

Misericórdia... Entendido, senhora. Estou desligando. Até mais.

Até mais.

Pegou a farda correndo, jogou as roupas em cima da cama. Assim que vestida, foi atrás dos coturnos. Estavam mal engraxados, mas não tinha mais tempo. Amarrou o cabelo e desceu correndo as escadas rumo à calçada. Martins estava lá a esperando. Só percebeu sua presença quando já dentro do carro ela bateu a porta. Seu amigo estava visivelmente exausto, e aquela situação, provavelmente, estava abalando-o, afinal, quando tudo aconteceu, ele, dentre os dois, é quem mais sentiu o peso de tanta morte e desgraça.

Tudo bem? ㅡ Uma Alessia visivelmente preocupada, perguntou a um Renato visivelmente quebrado.

Só vamos até o quartel, por favor. Só vamos terminar isso logo... Precisamos encontrar essa menina. ㅡ Alessia sabia que ele sofria com os fantasmas daquelas pessoas mortas. Elas o lembravam de seu passado, um passado que ele lutava todos os dias para esquecer.

Seguiram rumo ao quartel. Durante todo o caminho, entre eles, existia o peso de todo o pavor não dito. Ela sentia as lágrimas querendo escapar em um choro sonoro e desalentador. Renato percebia em sua espinha uma malha de gelo que estremecia seu corpo cada vez que o pensamento de morte corria em sua mente. Seus estômagos se alto digeriam em um desconforto torturador, que os fazia sentir seus conteúdos sendo forçados contra suas gargantas. Era essa a situação ao estarem descendo da viatura rumo à porta. Cabisbaixos, entraram no quartel. Rogério e Bernardo saíram do corredor e entraram por uma das portas em uma sala onde começaram a dar risada. Ao verem ela passando, chamaram-na aos risos. Miranda entrou a passos lentos, e cara de poucos amigos, eles estavam apoiados um em cada canto da mesa de Joaquim que também ria olhando para a tela do computador, pediram que ela fosse ver. Passo a passo se aproximou de Rogério no lado esquerdo e olhou para a tela. Lá estava uma montagem da cena do primeiro filme de "Carrie, a estranha", só que no lugar do rosto de Carrie surtando com todo o sangue de porco em si, estava o de Renato. Esse recorte veio de uma foto que logo depois Alessia descobriria ter sido advinda do momento em que ele estava na cozinha, e Carvalho em pessoa foi contá-lo da chamada que o quartel havia recebido. Com os punhos cerrados, olhos marejados e ardentes, Miranda saiu da sala sem dizer palavra alguma.

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