O ar gélido entrava pela janela. O vento batia nos fios de cabelo presos e cobertos pelo bibico. As orelhas doíam com o frio. Os lábios secos. Os pés empurrando o chão. Os dedos sendo mexidos embaixo do coturno. O braço levantado, a mão suspensa, os nós dos dedos segurando a alça de teto. O peito gelado pela respiração. Os olhos da oficial Miranda estavam presos no caminho por entre as ruas silenciosas do Centro. Acima daquelas construções obscurecidas se estendia um céu alaranjado carregado. Talvez fosse chover mais uma vez, pelo que pensou o oficial Martins, enquanto dirigia com destreza a viatura. Corriam contra o tempo. A oficial olhava para as lojas escurecidas pelas luzes dos postes. O peito crescia e subtraia, os lábios entreabertos. Martins apertava os nós dos dedos contra a alça do volante. Expirava sonoramente. Os olhos pressionados e forçados ao longo do asfalto. Todo o seu corpo se comprimia. Os lábios estavam escondidos dentro de sua boca. Miranda fez-se mais confortável no banco do automóvel. Era esse o momento final. Meses se passaram e agora estava tudo acabado. Violentamente acabado. Ou pelo menos era de se esperar. Por meses todo o corpo policial e a as pessoas envolvidas se viram presas em um jogo onde duas forças da natureza se enfrentavam. Naquela noite a balança pendeu para um lado.
Miranda olhou para o letreiro neon, levantou a mão. Martins percebeu e desacelerou, então estacionou embaixo dele. Ambos desceram e foram até a cafeteria. Por trás da vitrine via-se os dois fazerem perguntas para um funcionário, que balançava a cabeça. De lá, seguiram em lados opostos, procurando por um vácuo entre as construções daquela rua. Lanternas em mãos, e mãos nas armas. Passos cuidadosos e silenciosos. A oficial achou um canto sombreado e escuro. Ligou a lanterna. Aos poucos se aproximou da esquina que dava entrada. Respirava com esforço para ser silenciosa. Sentia uma pressão no peito se espalhar pelo tórax, e o coração à mil. Inspirou profundamente, usando a boca para auxílio. Puxou a arma e por baixo colocou a lanterna cruzando os punhos. Rapidamente apontou ambas para a escuridão. Deu-se com o gesso da parede pouco à frente. Pôde soltar a respiração. Baixou a guarda e foi procurar por Martins. Este a esperava na mesma posição que ela antes, enquanto pedia para se aproximar com a cabeça. À caminho do parceiro deixou-se relaxar da posição enquanto caminhava silenciosamente, pressionando primeiro os calcanhares. Chegou até o parceiro. Ambos caminhando pelo longo corredor, iluminando o chão e as paredes alternadamente. No fim podiam ver o final dele e a abertura para um espaço mais amplo. A oficial deu-se com uma porta entreaberta próxima de si e parou. Martins achou melhor fechá-la, porém não o fez. Deu um passo atrás, puxou o celular e fotografou. Seguiram adiante. No chão acharam gotas de sangue. Com cuidado, passaram por elas, tiraram mais fotos, e seguiram rumo. O silêncio os apertava e sugava a força de seus músculos e pesava em seus membros e os empurrava para trás. O silêncio ruia nos ouvidos de Miranda e seu peito competia em batucadas. Chegaram ao ponto onde a luz da lanterna já não rivalizava com a escuridão plena, mas sim, com a fraca iluminação do espaço a ser descoberto.
Lado a lado os dois se depararam com a cena. Quatro corpos. Sangue. Uma cabeça decepada. O odor de ferro e açougue tomava conta do local. Ambos cuidadosamente se aproximaram. Uma das duas garotas mais para trás do corpo mais próximo tinha que ser quem ligou, e ela deveria estar viva ainda. Ela tinha que estar. Rapidamente os oficiais puderam diferenciar. Da garganta de uma era possível ver a fenda ainda lentamente sangrando. Enquanto a outra, ainda que ferida, estava apenas pálida, seu tórax se movia devagar, o canto de sua boca também estava manchada com a mesma coloração do vômito no chão. Martins rapidamente tirou fotos de diversos ângulos, e junto de Miranda realizou os primeiros socorros. Não demorou até a ambulância e outras viaturas chegarem, assim como os investigadores e a major.
Carvalho era mais alta que Miranda, seus olhos eram menos felizes, sua postura mais rígida e sua farda mais limpa, quase intacta. Miranda a conhecia desde pequena, espelhava-se nela desde pequena e almejava ser como ela, desde pequena. Carvalho era agora a comandante e ambas trabalharam juntas em todos esses casos. A major percebeu que os talentos da policial ultrapassavam os limites que o serviço delas impunha em situações como aquela. A soldado tinha habilidade o suficiente para ser uma investigadora e a comandante soube aproveitar disso durante todo esse tempo. Agora ela usaria isso uma última vez, enquanto os outros dois investigadores ainda pensavam sobre o assunto. Ela esperou a soldado, junto de seu parceiro, terminar de ceder as fotos para os investigadores e a chamou com a mão.
Senhora? ㅡ Os olhos vivos, e atentos, fixos nos de Carvalho. Miranda sentia-se como uma criança a levar uma bronca, sempre que era chamada, mesmo que não tivesse feito nada de errado, ela apenas se sentia assim.
O que você acha que aconteceu? ㅡ Os olhos da soldado faiscaram. Rapidamente se virou. Então começou a construir a história.
Bom, levando em conta que as duas vitimas tavam ali, então é possível que foram encurraladas... uhm... Teve luta, e pelos cortes no corpo delas, elas estavam tentando escapar. Marie tava com um machucado na testa, enquanto Mirtho teve a jugular cortada, eu diria que ela foi atacada enquanto tava abaixada, e a pancada na testa de Marie talvez tenha sido o motivo. Ela estava protegendo a amiga. Agora, sobre Valquíria, ahm... não sei se ela as encurralou na boca do beco, ou a partir daquela porta, também tem a questão do caco de vidro... Talvez Marie tenha ficado furiosa com a morte da amiga e perfurou as costas da assassina, mas porque ela tava de costas? Então aqui entra uma outra teoria, Marie não caiu antes de Mirtho ser cortada, mas depois, acho que de alguma forma a assassina achou que ela entrou em choque e então se virou, dando a brecha pro ataque...
Mas onde entra o Monstro nessa história? ㅡ A oficial Miranda colocou uma mão na cintura e se fez mais à vontade. Utilizando a outra mão para indicar as pistas.
Aí voltamos pra porta, levando em conta que em outros ataques o Monstro apareceu nos mesmos lugares que o-a... A Veneza aparecia, então talvez ele estivesse espionando a assassina, levando em conta que eles agiam como se estivessem numa competição, então essa teria sido uma armadilha final, para as meninas e para a assassina.
E porque você acha que Marie não foi pega pelo Monstro?
Eu acho que é porque ele achou que ela já tava morrendo... E sofrendo... Sabemos que o Monstro usa um método muito mais lento e doloroso para matar. E, claro, a Veneza já estar ferida foi um bônus pra acabar com essa suposta rivalidade. ㅡ A major parecia satisfeita. A Soldado também, quase sempre sua ideia do que tinha acontecido batia com a realidade. E ser escutada era sempre prazeroso.
Perfeito, muito obrigada, soldado Miranda. ㅡ A soldado sorriu levemente com o canto da boca, mas logo sua expressão ficou totalmente rígida. A major se alarmou com a mudança.
Senhora?
Sim?
A senhora acha que agora que Marie sabe quem tava por trás da máscara... A senhora acha que ela vai conseguir ajudar a achar uma motivação pra tudo isso?
Talvez... Só que se existe alguém que sabe dos porquês, essa pessoa é o Monstro. Sabendo que nosso norte é a Valquíria, será mais fácil de procurar e prender essa coisa. Fique tranquila, tudo vai dar certo a partir de agora.
Miranda sabia que se Carvalho afirmava aquilo, eles realmente tinham alguma chance. Foram meses de noites em claro, meses em que ela tentava desesperadamente achar alguma alternativa, algum indício. Ela sabia que os investigadores não tinham tantas pistas, pois tudo aquilo não fazia sentido. Nenhum interrogatório apontava para algo de significante entre as vítimas e Valquíria, e mesmo assim lá estava ela decapitada. No entanto, qual era, realmente, sua relação com o Monstro?
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Anamnese.
Mystery / ThrillerO jogo de morte dos assassinos Veneza e Monstro, de três anos atrás, marcou para sempre a vida de quem vivenciou os casos. Agora, com a morte de uma adolescente, todos se perguntam se os horrores do passado estão voltando para os assombrar.