Capítulo 6 - Os fantasmas.

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O cheiro morno do ar contido adentrou às narinas de Marie. Envolta em seus cobertores ela abriu os olhos. Coçou-os e se empurrou da cama. Sentiu os dedos sendo acariciados pelo tapete felpudo sob seus pés. Respirou fundo e se jogou no caminho até o banheiro de seu quarto. Pisadas pesadas e descompassadas seguiram dentro do vazio no meio do quarto. Atrás de si, Marie fechou a porta. Depois de um tempo, ainda balançando as mãos molhadas, saiu. Percorreu uma diagonal de onde estava, chegou ao guarda roupas, abriu as portas maiores e da prateleira do meio retirou um moletom cinza mal dobrado. Cheirava à comodidade. Depois abaixou-se e puxou uma gaveta, da onde saiu uma calça azul escura grossa de moletom e aparentemente maior que o número que ela usava. Passou para o do lado, onde as portas maiores eram menores que as outras que a delimitavam. Abriu a gaveta que sucedia logo abaixo do fim da porta, de lá apenas puxou a primeira calcinha que sua mão encontrou e voltou-se para o banheiro. Dessa vez se deparou com o espelho, a porta ainda aberta atrás de si. Respirou fundo, colocou as roupas em cima do vaso sanitário, ajeitou o cabelo, então subiu a blusa do pijamas. Suas sardas contrastavam com as diversas cicatrizes em seus ombros e braços. Em sua testa havia algumas marcas também. Virou-se e observou as costas por cima dos ombros, lá estavam cicatrizes brancas e rosadas, de diversas saliências. Ela voltou a se virar para se encarar de frente, colocando as mãos na bancada da pia, sentindo a pedra fria doer em seus dedos que mal sentiam como antes. Seus cabelos agora estavam mais curtos, seu rosto mais arredondado, não só por dormir, mas porque já não saia mais andar e se exercitar como antes. Os olhos ganharam olheiras para os adornar. A pele havia ficado pálida e quase tão seca quanto gesso. Os lábios andavam constantemente desidratados, e os olhos ganharam uma lubrificação constante, sempre brilhosos e claros, como os de uma criança faminta. Ela os observava. Sempre. Sabia que eles também haviam mudado, assim como a cor de seus cabelos, que morreu um pouco. Dentro daquele banheiro comprido ela estava logo em um lado do retângulo, a luz branca e forte, o cheiro da toalha de mão úmida, o teto longe, a janela em cima do box, competindo em altura com o chuveiro. As paredes de vidro escuras. Os suportes de produtos paralelos à parede que se movia eram pequenos, modestos, de vidro. Com poucas opções. Na bancada um suporte para escovas de dente, uma um pouco suja de pasta, e uma escova bem básica empoeirada. Do outro lado uma escova melhor, e a pasta de dente toda torta logo ao lado. A saboneteira suja com o sabonete que virou, em maior parte, pasta. Alguns perfumes em frascos bonitos rosados, e roxos, e dourados. As portas das gavetas e armarinho, tanto da parte da bancada, quanto da parte do espelho eram escuras. Os pisos do banheiro eram escuros. Era uma caixa sóbria. Marie ainda observava seus olhos. Cada detalhe. Observava seu rosto também, tocava, e puxava e empurrava sua pele. Havia mudado desde três anos atrás. A inocência já àquela época estava sendo pouco a pouco dilacerada, não apenas com os lapsos de vida adulta, mas também com as diversas perdas e danos. Marie se encarava. Atenta. Observando cada centímetro de si. O peito se enchia de força e seu estômago se contraia. A força em sua mão subjugava o frio dolorido em seus dedos. Atrás de si sentia uma avassaladora presença pesada. Sentia tudo aquilo que tentava tirar de si. Aquela presença sombria e gélida. Aquilo começou a tomar conta de seus pensamentos. Aquilo estava cada vez maior. Aquilo estava cada vez mais perto. Aquilo podia doer. Aquilo estava tocando sua espinha em cada vértebra. Aquilo ia tomá-la. Do canto de seu olho ela viu Aquilo se aproximando. Virou-se a tempo de encarar o que tanto a assombrava, e se deparou com seu quarto e mais ninguém. Estava fria. Fechou a porta e a trancou. Terminou de se despir e adentrou no box. Ligou o chuveiro tomando certa distância da onde a água caía, acompanhava o aquecer pela mão. Assim que achou que dava, mergulhou na cascata de água quente que doía em seus pés gélidos. Estava encoberta pelo calor líquido e sensível, que a confortava. Seu peito ainda bombeava todo o desespero do recente ocorrido. Puxou a toalha que estava esticada em sua vara de suporte, se enxugou no box fechado, deixando apenas os pés molhados a serem enxugados do lado de fora. Colocou a roupa. Jogou um pouco de água gelada no espelho retangular, tentando desembaça-lo, mas viu que tinha que abrir a porta pra isso melhor funcionar. Quando abriu, a brisa que antes parecia ser morna tomou qualidades de friagem e agora envolvia o pescoço, a face, a ponta dos cabelos da mulher e o topo de sua cabeça. Penteou-se e voltou para o quarto. Dando uma olhada da direita pra esquerda, viu sua cama não tão desarrumada. Mais próxima de si, a sua prateleira de livros. Seus puffs e tapete ao lado da cama ainda estavam bem postos, o guarda roupa na parede oposta à janela, estava iluminado por faixas de luz amarelada. Ao seu lado esquerdo estava sua escrivaninha com computador, papéis, livros, jornais e revistas, mas decidiu que não ia organizar nada. Encontrou umas pantufas embaixo da cadeira e as calçou, então saiu. À sua frente estava a mesinha de madeira com um vaso de flor, talvez um esforço do pai para manter um mínimo de conforto na casa. Virou-se seguindo o corredor interminável de fotos. Fotos dela feliz brincando ao sol com Mirtho. Fotos dos pais quando jovens. Fotos de Carlos bebê. Fotos de Valquíria ensaiando em uma aula de balé. Fotos das duas se encarando em cantos opostos da sala. Fotos de todos os amigos de Marie desde pequenos reunidos. Fotos de uma época sempre morna, que confortava e pesava em Marie. Não mais que três passos à frente estava a porta do quarto que nunca ousou entrar, a oficina de artes de Valquíria e sua mãe. Um local proibido. Logo ao lado, a porta com maçaneta empoeirada do quarto de Valquíria. Depois da polícia, ninguém mais havia ousado adentrar ali. A próxima porta estava aberta, sons de teclas sendo pressionadas e uma conversa íntima saia de lá. Carlos e Miguel jogavam. Ainda que o melhor amigo de seu irmão sorrisse, Carlos era sempre controlado. Com o tempo ele começou a ser solitário. Os pais das outras crianças incitavam que eles se afastassem do pobre menino. Menos os pais de Miguel, eles faziam questão que o menino levasse Carlos para cima e para baixo, e nunca hesitaram em deixar o filho acompanhar os programas da família. Ela deu uma espiada na tela do computador do irmão e viu que era quase hora do jantar. Bateu na porta. Como sempre, Miguel foi o mais ativo na conversa, Carlos só falava uma coisa ou outra, quando não resmungava, sempre atento ao que acontecia na tela. Combinaram de ela fazer uma salada e esquentar uma lasanha. Marie passou pela porta do quarto dos pais. Chegando nas escadas escutou Miguel dizendo que ela estava melhor, e Carlos retrucando que aquilo não era uma constante. De fato, foram três anos de surtos. Surtos no quarto, onde ela rolava no chão chorando, surtos nos degraus com ela não conseguindo respirar se segurando no corrimão para não cair. Isso quando ela simplesmente deixava de sentir o mundo. Eram esses os dias mais perigosos, porque ela sentia-se tentada a sentir, e isso implicava em seu pai desesperado vendo os cortes em seus braços sangrarem. A escada descia fazendo uma curva, tornando possível ver a porta da contra-sala, que dava para a porta da rua; a sala; as portas da copa; a entrada da cozinha; e a continuação da sala, que dava para a varanda, a qual ficava de frente com o quintal. Chegando ao último degrau já virou para a esquerda e foi em direção a cozinha. Pelas pontas dos pés pegou o rádio em cima de algumas prateleiras do balcão à sua direita, verificou se seu cd estava ali e o ligou. Ouviu-se a porta de Carlos fechar. Aos poucos a atmosfera da "Moonlight Sonata" tomou o ambiente. Marie sentia-se alimentada. Um pouco mais à frente abriu a geladeira, tirou os legumes e verduras da gaveta, colocou na ilha. Passeou por entre os armários da cozinha e gavetas pegando os instrumentos. Voltou-se para as sacolas, retirou os vegetais e começou a lavar, separando na bacia. Colocou a água pra ir esquentando enquanto cortava e ralava os ingredientes. Começou pelas cenouras. A música em descompasso com os cortes duros e imprecisos começou a incomodar os ouvidos de Marie. A dança da lâmina brilhando com a água e a luz da cozinha começou a hipnotizar. Logo estabeleceu-se um ritmo. A mulher passou a sentir o gume invadindo e separando em pedaços os vegetais. Começou a sentir a placa de metal afiado abrir fendas em suas estruturas. Assim como aquela faca que tanto a perseguiu. Lembrou-se daquele corpo preto e o corte prateado. Lembrou-se da sensação daquilo descolando as fibras de sua pele, daquilo rasgando sua carne. Lembrou da dor aguda que tampava os ouvidos. Lembrou do sangue escorrendo lentamente. Lembrou de como o ar era frio dentro dos cortes. Os olhos começaram a inchar e arder, respirar estava sendo complicado, a saliva juntava-se na boca, enquanto a garganta se ressecava e não permitia nada mais do que o ar passar, podia sentir seu tato sumindo do cabo, seus dedos abrirem, e os relevos insensíveis se descontraindo nos nós dos dedos, algo a puxava com a força de um empurrão para trás, sentia-se flutuando rumo a um poço congelado, não conseguia enxergar, sentiu uma pancada queimar atrás de sua cabeça e os cotovelos arderem com o baque. De suas costas todo ar foi retirado.

À sua volta tudo era preto como carvão. Abaixo de si estendia-se o chão espelhado à perder de vista, podia se ver duplicada. Moonlight Sonata ressoava pelo lugar. Sentia o corpo ser serpenteado por um arrepio. O estômago incomodado a enjoava. À sua frente uma grande nuvem de neblina se aproximava. Garras nebulosas enormes grudavam na planície e se arrastavam violentamente para cima de Marie. Essa violência silenciosa parou como uma parede a alguns centímetros perto da mulher. De dentro da névoa densa formou-se uma elevação que rasgou no torso de uma figura encapuzada. A malha trançada cinzenta e grossa cobria aquele ser. Ela podia ver o osso da clavícula exposto, e a pele pálida e lisa abaixo do capuz. Aos poucos a face foi sendo revelada. O queixo fino surgiu, o sorriso malicioso de lábios pequenos, aos poucos brotou, assim como o nariz estreito e delicadamente pontudo. Entre os fios negros e espetados estavam os olhos quase amarelos de ave de rapina. Era possível sentir a cólera ensandecida exalar da pele morta da criatura. Marie exitou para trás. Valquíria continuou parada visando-a. A mulher percebeu seus dedos vibrarem em pavor, o peito se esvaziar e o lábio inferior estremecer. Os olhos ardiam e ela não conseguia, apenas não conseguia. "Moonlight Sonata" continuava a tocar.

Nunca vou deixar você escapar. Você jamais se tornou livre de mim. ㅡ A voz melodiosa, sonora, envolvente, e dura, estremeceu as vértebras de Marie. Valquíria ajeitou os ombros como um leopardo. A víbora deixou seu sorriso rasgar o rosto. Os olhos se divertiam com o medo exalante da mulher. ㅡ Você está presa nisso, essa é a sua sina. Sofrer. ㅡ O sorriso morreu. ㅡ Então sofra. Sofra. Por mim, Ma. ㅡ A escuridão tomou a imagem do rosto de Valquíria deixando um vácuo. O manto e a neblina se aproximaram de súbito. Marie podia olhar apenas para o infinito à sua frente. Escutou um grasnar. Com o salto de seu peito, um corvo saiu do capuz.

A claridade agredia seus olhos. A nuca queimava, assim como os braços e costas. Levantou-se, ainda que as mãos não estivessem confortáveis, como se houvesse algodão e cola entre os dedos. Segurando no balcão atrás, levantou-se de costas para a ilha. "Moonlight Sonata" continuava a tocar, ainda tinha tempo até outra música começar. A água estava liberando vapor à sua direita. Atrás de si, podia sentir o cheiro dos legumes. Os olhos de Valquíria brilharam em um lapso. O ambiente estava levemente aquecido. Aquilo estava voltando a envolvê-la. Podia sentir estar sendo amarrada por aquilo. Desligou o fogo e foi para a varanda. Podia ver, entre os poucos raios de luz dentre o céu nublado, Mirtho e ela correndo pela grama. Os cabelos redondos da amiga dançando enquanto ela corria com sua espada, que era um graveto. E Marie, com seu cabelo curto balançando, enquanto ela rugia como um dragão. Lembrou-se da luminosidade sempre dourada desses dias. Na ponta de seus ouvidos podia escutar as risadas. Estava de pé encostada na porta de madeira e vidro, no canto direito. Após o espaço da entrada, estava uma cadeira acolchoada, idêntica a que estava à sua frente, e abaixo de sua visão. Tudo era claro naquela varanda, desde as paredes, até o piso e as almofadas, tirando os vasos marrons e as plantas verdes escuras. O gramado era verde, a árvore frondosa e exibida com sua copa cheia ficava quase centralizada. Envolta havia canteiros com plantas verdes que com o tempo foram ficando mais e mais vivas aos cuidados de Marie e seu pai, florescendo em diversas cores. Mais ao canto direito da varanda havia um móvel que simulava uma bancada de bar, era grande e enfeitada com diversas garrafas de diversas bebidas. Entre copos, apoiadores e aquários com rolhas estava um porta retratos, uma foto de todos reunidos o preenchia. O pai abraçando um Carlos recém nascido no colo. No canto direito, uma Marie com uma janelinha sorrindo faceira, com sua franjinha tão grande que quase cobria os olhos apertados. Atrás dela uma Valquíria sorrindo com os lábios, e os braços cruzados. E sua mãe, no canto esquerdo, segurando a máquina de foto. Ela era extraordinariamente como sua mãe. Os olhos meio que caídos, os cabelos que quando mais curtos eram cheios de ondulações e grossos, o rosto redondo por alguns quilos à mais. Os olhos de sua mãe eram de um verde obscurecido que aparecia somente com uma boa iluminação, e os cabelos eram ruivos, vibrantes. Enquanto os cabelos de Marie eram de um castanho claro, nem ruivo, nem loiro, nem castanho exatamente, estavam entre. Suspirando, Marie voltou-se para o lado interno. À sua esquerda estava a porta da ante-sala, sentiu-se tentada a dar uma volta. Lembrou-se do mundo lá fora. Sentia a presença esmagadora das pessoas. Olhares. Lembrou-se que lá fora havia sempre uma solidão acompanhada. Apertou os dedos contra a madeira da porta de vidro. O peito cresceu preenchendo-se com uma vontade independente de Marie. Lentamente ela tomou rumo até a porta de madeira adornada. Lentamente seu corpo formigou e o chão sumiu sob seus pés.

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