Aquela cena só poderia ser um delírio. O mundo todo de Marie tinha virado do avesso, e agora mais essa. Não podia ser possível. À sua frente estava Evelyn apertando as bochechas de Carlos, e sendo barulhenta como sempre. O cabelo preso em um coque todo desfiado para cima e dois fios ondulados caindo nas laterais do rosto. Em seus pulsos, diversas pulseiras de argolas, similares aos seus brincos. Elas tilintavam incessantemente. Usava um vestido com mangas gigantescas, que faziam ela parecer um esquilo voador quando abria os braços. E em seus pés usava rasteirinhas bege, ironicamente, nada chamativas. Ao contrário do vermelho vibrante de seu vestido cheio de formas geométricas, e suas unhas gigantes, e azuis.
Ricardo tentava, realmente, esboçar um sorriso. Mas ficar parado ali não adiantaria de muita coisa. Sair do lugar e tentar se aproximar não estava sendo fácil. Era como se uma parede enorme estivesse o impedindo. Carlos estava o preocupando. O menino não reagia aos apertões da mãe, nem a abraçava. Assim como ele e Marie, o menino estava parado a olhando. Evelyn não tinha nem sequer olhado para a cara dele, e pelo jeito, Marie foi quem a recepcionou na noite anterior. O que fez com que ela voltasse? O casamento tinha acabado via correio. Ela tinha sido bem clara que não conseguiria, sequer, pisar naquela casa mais uma vez. Mas não queria retirar as crianças de sua zona de conforto. Por isso abriria mão de sua parte, e da guarda. O que estava se passando? Olhando para Marie, que sabia de tudo isso, ele percebeu que a ficha dela ainda não tinha caído.
Ahn... Como vão as coisas? ㅡ Evelyn parou de súbito. Olhou diretamente para Ricardo. Os sons das argolas de repente sumiram.
Como vão as coisas? Elas vão bem. Muito obrigada... Agora... Você deve tá se perguntando por que eu vim pra cá, certo? ㅡ Ela se dirigia até ele. Passo a passo. Mal batia em seu peito, mas conseguia causar um terremoto em sua espinha com aquele olhar. ㅡ Parece que mais uma vez tá tudo acontecendo... E não sei se você lembra, mas nossa filha quase foi morta pela nossa outra filha, e desde que você é um incapaz de cuidar dos nossos filhos, alguém deveria vir cuidar deles. Olha o estado da Marie. ㅡ Ela apontava para a garota lívida do outro lado. Carlos continuava impassível. ㅡ Tá com olheras, engordou, e mal deve estar comendo, e por quê? Porque, claramente, você não consegue cuidar de um filho sequer. Então eu tive que vir, porque se não fosse eu, naquela última vez, com certeza as coisas teriam sido pior. ㅡ Marie nunca tinha visto aquilo, mas pela primeira vez seu pai estava começando a ficar vermelho, e não de vergonha. Ela podia sentir o ódio queimando na carne dele. Pegou Carlos pelos ombros e o levou para o quarto.
Dentro do quarto podia escutar os gritos, mas tentou colocar algum filme para abafar melhor o som. Carlos não parecia abalado. Mas vai saber como que uma criança absorve as coisas. Depois de três anos sem saber o paradeiro da mãe, de um dia para o outro ela volta, e ainda volta causando todo o estresse que há anos Marie não via reverberando pela casa. Marie tinha vagas lembranças de sua mãe gritando pela casa, mas conforme o recorte ia de Valquíria, para seu pai, as memórias ficavam cada vez mais vívidas.
Marie podia se lembrar de quantas vezes sua mãe gritava de dentro do ateliê com a irmã. O ateliê que ela nunca pôde entrar. E de dentro do quarto da irmã, também. As coisas que saiam de lá não eram nada gentis e calorosas. Ela sabia disso, e quando mais nova, fazia o possível para que a mãe continuasse a gritar com a irmã, em vez dela. Uma vez que Valquíria nunca queria brincar, e sempre tava dizendo que era grande demais para ficar fazendo as coisas "tontas" dela. Marie sempre dava um jeito de colocar Evelyn contra a irmã. Ela só era uma criança.
Depois, quando ficaram mais velhas, Marie dava algum jeito de descobrir ou inventar alguma coisa da escola, para que Evelyn se preocupasse mais com Valquíria, do que com ela. Para poder sair com o pessoal, ou poder dar alguma notícia que tinha o potencial de a pôr em castigo. Lembrou-se de quando viu que saíra beijando Gael, seu namorado, ao fundo de algumas fotos do segundo baile à fantasia, que Sabrina e Regina estavam de anfitriãs, e logo seus pais descobririam. Eles não gostavam desse tipo de exposição. Então. Mas antes de Evelyn descobrir, ela fez a mãe ver uma foto de Valquíria saindo para algum canto dos jardins da chácara da família das amigas, de mãos dadas com um veterano do colégio. Isso foi suficiente para Evelyn dar seu espetáculo com a irmã, alegando que pelo menos sabia quem Gael era, ao contrário da filha mais velha que nunca tinha contado desse menino nas fotos. Marie, de certa forma, sentia culpa ao olhar os olhos marejados de Valquíria, que nunca retrucava a mãe, pois sabia que Evelyn poderia ser muito pior que apenas algumas ofensas. Marie era apenas uma adolescente.
Carlos nunca foi assim. Afinal, nem idade tinha para competir com as irmãs. E agora Marie estava ali tentando fazer ele não ter que escutar tudo o que acontecia no andar de baixo. Ela colocou um filme de animação que eles gostavam muito. Ou pelo menos ela achava que ele gostava. Afinal, Carlos não reclamava, ou revirava os olhos, como ela faria. Ou qualquer outro pré-adolescente daquela idade. Eram raros os momentos que ela passava assim com ele. E isso a fazia se sentir péssima. Haja vista que estavam a algumas portas de distância, e o irmão, por vezes, ficava lá, sozinho, sem a companhia de Miguel. Ela também sentia-se péssima por estar tendo aquele momento forçosamente, para que os pais pudessem colocar as cartas na mesa. De certa forma, com a volta dos assassinatos, e todo o passado sendo revirado, e agora a volta de sua mãe, o mundo inteiro de Marie e sua família estava sendo jogado no ventilador.
Eu sei que você não quer que eu escute eles.
Eu não acho que seja bom pra você ouvir o que tá acontecendo. ㅡ Marie já tinha se esquecido que Carlos não era mais uma criança inocente.
Mas eu sei... E tá tudo bem. Mas e com você? ㅡ Tudo bem, ele estava ainda mais consciente de tudo.
Eu tô bem Cacá-
Eu consigo sentir seu desconforto, Ma. Não precisa mentir pra mim.
Não é mentir... Isso é o que menos me incomoda-
Sério? Então por que você fugiu comigo pra cá? Sabe... Você não precisa ser durona. Eu sei que você não é. ㅡ Marie se lembrou da sua primeira crise depois que saiu do hospital. Foi logo após de sua mãe sumir subitamente.
Eu não fugi, eu só tô te protegendo-
Cê não precisa me proteger. Eu me virei sozinho, muito bem, todos esses anos. Sabe... Se você não tiver bem... Eu posso cuidar de você-
Eu também sei me virá sozinha, Cacá-
Então porque cê num sai trabalhar? Fica o dia todo no seu quarto? Eu e o papai tava falando disso, tem uns dias já. Ele me explicou que você tem medo-
Eu não tenho medo... Não o medo que uma pessoa normal teria, tudo aquilo que aconteceu-
Eu sei, você precisa de remédios. Eu já vi você tomano na cozinha.
A gente pode mudar de assunto, por favor?
Tudo bem.
Obrigada. ㅡ Ele se virou, abandonando completamente as imagens do filme.
Eu... Posso te abraçar? ㅡ Aquilo era novidade. ㅡ Papai disse que isso te ajuda.
Pode, sim. ㅡ Ela deixou, mas, principalmente, porque assim ele não conseguiria ver ela segurando as lágrimas. Ele tinha razão. Marie tinha medo. Muito medo. E pior. Ela tinha fantasmas. Mas ela também tinha seu pai e seu irmão dando suporte, tinha o grupo de investigação com Alessia e Sandra, e tinha Victor presente. Ela poderia muito bem exorcizar eles aos poucos. Seu psiquiatra gostaria disso. Talvez fosse a hora dela começar a fazer algo de relevante para a investigação.
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Anamnese.
Misterio / SuspensoO jogo de morte dos assassinos Veneza e Monstro, de três anos atrás, marcou para sempre a vida de quem vivenciou os casos. Agora, com a morte de uma adolescente, todos se perguntam se os horrores do passado estão voltando para os assombrar.