Capítulo 04

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O olhar de Christopher por pouco não era capaz de abrir um buraco na parte de trás da cabeça de Dulce. Felizmente, toda vez que ela se virava, não era o Christopher de sempre que via, mas sua versão suada e inchada — o que destruía a imagem de encarnação do sexo que sempre tivera dele.

Ela acenou.

Ele estreitou os olhos e se sacudiu violentamente no assento — mais uma vez.

Dulce suspirou e se virou para olhar por cima do ombro direito, na direção do assento da irmã. Notou que Maite dormia feliz. Será que ela perdera o barraco?

Era sem dúvida a pior irmã do mundo!

— Mais vinho. — Vovó Nadine entregou a Dulce o copo vazio. Mas o que ela faria com aquilo?

Uma comissária de bordo apareceu do nada e o encheu até a borda. Como alguém conseguia aquele tipo de atendimento em um voo tão curto? Eles nem estavam na primeira classe!

Sem dizer nada, Vovó Nadine pegou o copo plástico das mãos de Dulce e tomou um longo gole. Cada milímetro da borda estava coberto de batom vermelho, indicando que o objeto pertencia a ela e a mais ninguém. Parecia haver mais batom ali que em todos os estandes da Sephora.

— Então, Dulce. Sei que Christopher é um bundão...

Dulce soltou uma risada curta. Vovó Nadine poderia ser sua parceira de voo sempre que quisesse.

— Mas... — A velha senhora interrompeu a frase para outro gole de vinho. — É o meu bundão.

Dulce quase engasgou, de tanto que riu.

— Não, calma... — Vovó deu um longo suspiro. — Não quis dizer que ele é meu... Ele é bundão por ele mesmo. Mas foi muito mimado por mim quando criança. O garoto tinha medo de tudo, sabe?

— Ah, é mesmo? — Dulce fingiu desinteresse, apesar de a revelação ter feito seu coração bater com força. — Não sabia.

— Ah, querida! Vovó riu. — Ele tinha medo da própria sombra, quando garoto! Dormiu na cama dos pais até os seis anos!

Coitados dos pais de Christopher.

— De qualquer modo... — Vovó deu mais um gole no vinho. As joias que usava no pulso tiniam quando ela gesticulava ao falar. — É meu trabalho, minha missão, fazer o melhor por ele. Ajudá-lo no percurso, fazer dele o homem que deveria ser, antes que seja tarde demais.

— A senhora está doente? — sussurrou Dulce, sentindo o coração apertado.

— Eu? — Vovó deu uma risada. — Ah, querida! Deus ainda não me quer do lado dele! Ele me contou isso hoje mesmo, pela manhã.

Então vovó tinha conversado com Deus. Dulce se perguntou se a conversa significava que ela também estava tentando salvar a alma de Christopher.

— Então... — Dulce soltou o ar e esfregou as mãos nas calças. — Qual é o plano?

— Ah. — Vovó esvaziou o copo tal qual faria uma estrela do rock e o devolveu a Dulce. — Isso é fácil. Já o deserdei. Christopher conta apenas com o que tem na poupança. Também o demiti. Embora ele ainda não saiba.

— Hum.

— Que gracinha. — Vovó deu tapinhas na perna de Dulce. — Percebi que você ficou preocupada com ele. Não fique. Depois disso, Christopher vai pôr os pés no chão. Em uma situação difícil, os bundões sempre caem em pé. — Ela hesitou. — Ou será que são os gatos? — A velha senhora sacudiu a cabeça com o dedo no queixo, confusa. — Bem, de qualquer jeito... ele vai ficar bem.

— Então é para o bem de Christopher que você está arruinando a vida dele? — perguntou Dulce.

— Isso mesmo.

Vovó curvou o tronco para a frente, e os seios vistosos extravasaram um pouco do longo decote em V. Como ela conseguia manter um corpo daqueles?

Sério. Vovó Nadine era simplesmente incrível.

— Todo o mundo, todo o mundo mesmo, merece ter a vida arruinada — disse vovó, sorrindo e colocando uma das mãos perfeitamente feitas no braço de Dulce. — Isso mantém as pessoas agradecidas. Vou arruinar a vida de Christopher, e, no fim, ele vai ficar agradecido, feliz, satisfeito e... — Ela olhou para trás. — Não com essa aparência pior que o pecado. Ah, bom Deus! Aquele rapaz era lindo! Agora usa um negócio no cabelo, faz limpeza de pele e... — Vovó deu de ombros. — Ruína e imundice. Ele terá os dois. Quando eu terminar, Christopher nem vai saber o que aconteceu a ele. E, se isso não funcionar... — Fascinada, Dulce mal podia esperar para ouvir que pérola de sabedoria sairia da boca de vovó Nadine em seguida. — Bem, sempre tem o seminário religioso.

— A senhora o mandaria para um seminário religioso?

— Mas é claro que não! — Vovó levou uma das mãos ao peito, ofendida. — Ele que se ofereceria para ir, para me deixar feliz e poder novamente contar com as minhas boas graças. E com as graças de Deus, que não podemos nos esquecer d’Ele! Já faz anos que Christopher O irrita. Que Deus abençoe esse coração galinha!

— Ah, acho que a senhora não deveria dizer “galinha” e “Deus” na mesma frase.

— Besteira! — Vovó fez um gesto de indiferença. — Estou exausta. Vou descansar os olhos. Boa noite.

Parecia que a conversa tinha terminado. Ou isso, ou as três taças de vinho tinham derrubado vovó, que em questão de segundos começou a roncar. O avião pousou vinte minutos depois, encerrando o voo mais apavorante e estranho da vida de Dulce.

No instante em que o aviso de AFIVELAR OS CINTOS apagou, Dulce pulou do assento. Vovó acordou e bocejou.

— Já chegamos?

— Já. — Dulce estava tentando não ser mal-educada, mas só pensava em deixar aquele pesadelo para trás. Voltou o mais rápido que pôde para seu assento original, onde Maite esperava pacientemente.

— Precisamos ir agora mesmo! — ordenou Dulce. — Pegue nossas coisas. Não queremos que vovó Nadine pense que...

— Dulce! — gritou uma voz feminina familiar. — Dulce! Preciso de ajuda!

Em pânico, Dulce foi direto até vovó, passando inclusive por cima de outros assentos. A velha senhora esperava serenamente em seu assento.

— O que foi? É o coração? Está passando mal? Está...

— Minhas malas estão pesadas, e acho que bebi demais.

O que era a constatação do século. Vovó Nadine tinha bebido três taças de vinho em menos de vinte minutos. Na última vez que bebeu tanto assim, Dulce acabou com a cara enfiada em uma cama de cachorro, ao lado de um labrador chamado Lúcifer, que com certeza se aproveitara dela durante a noite, a julgar por todo o pelo que havia em sua boca.

— Pode carregar para mim? — Vovó Nadine deu um sorriso tão doce que ela não teve escolha. E foi assim que, uma hora depois, Dulce estava na área de restituição de bagagens ao lado de Maite, de vovó e de um Christopher bastante inchado.

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