Durante aquela primeira semana aprenderam a fazer curativo, sinalizar a praia, diferenciar as marés e descobrir quando o mar estava apropriado ou não para banho, procurar pessoas perdidas e orientar os banhistas mais teimosos.
Quando um caso mais grave acontecia, apenas os veteranos se envolviam.A única vítima de afogamento que os recrutas tinham a permissão de tocar era a "ressucianne", apelido carinhoso dado à boneca de treinamento especial que simulava os sinais vitais de uma pessoa afogada.
Silvana detestava aquela boneca e estava revoltada porque já tinha deixado a boneca morrer três vezes naquela manhã.
- Na prática deve ser mais fácil - Silvana retrucou desanimada - Essa porcaria de boneca já está programada pra morrer!
A instrutora deu uma lição de moral da qual Silvana não esqueceria tão rápido.
- Sabe Silvana, a boneca morre, e ninguém fica frustrado, afinal a boneca não tem pais, nem filhos, e nem estava correndo saltitante na praia a poucos instantes atrás. Já pensou se hoje, ao invés da boneca, você presenciasse três pessoas morrerem nas suas mãos? Nem Deus fez o mundo em um só dia... ele levou pelo menos uma semana. E é só isso que peço... tenha paciência de se preparar, pelo menos por uma semana. Vocês acham que não, mas é um treinamento de vital importância!
Silvana ficou visivelmente aborrecida, e Karen reiterou o que a instrutora disse, com sua experiência de vida.
- Ela tem razão Silvana! Agradeça a Deus por ser só uma boneca idiota. A pior sensação do mundo é ver alguém morrer em seus braços.
- Você diz isso porque essa droga de boneca não morreu nenhuma vez nas suas mãos - Silvana estava transtornada - Você é a queridinha dos instrutores, não sabe o quanto é humilhante matar essa porcaria de boneca!
Karen suspirou chateada.
- Eu já perdi mais que a vida de uma boneca idiota. Na minha época não tinha uma ressucianne para treinar, e vi um vilarejo inteiro se dissipar em poucos dias. As mesmas crianças que me presenteava com flores, morreram nos meus braços e eu não podia fazer nada! Eu não podia culpá-los por morrer só pra me deixar mal diante da turma! E não tinha como tentar de novo! Eles não tinham segunda chance. É neles que penso quando estou salvando a boneca. Enquanto você não se convencer que ela é uma vida importante, vai continuar deixando ela morrer.
Silvana estava encabulada e chorou arrependida de ter descontado a frustração na amiga.
- Me desculpe Karen! Não queria ser tão chorona e mimizenta, mas me senti pressionada. Acho que nunca vou conseguir... definitivamente essa profissão não é pra mim.
- Deixa disso! - Karen falou decidida - Não pode desistir do seu sonho assim! Você só precisa entender o jeito certo e praticar um pouco mais. Eu vou te ajudar!
Karen e Silvana voltaram à boneca, e Karen foi orientando-a quanto à posição, pressão exercida, e a maneira correta de aplicar o procedimento, no final tudo deu certo.***
Durante as semanas de treinamento, os laços de amizade entre os membros da equipe se estreitaram. Ao final do curso já se sentiam como se fossem uma família.
Entre esses amigos estava Carlos. Ele era um tipo muito atraente, Moreno bronzeado, alto e musculoso, com um sorriso do tipo Erik Strada, que deixaria qualquer mulher enlouquecida, mas ele era considerado o terror do curso salva vidas.
Carlos era o típico donJuan, paquerando descaradamente todas as mulheres de quem se aproximava, e também era do tipo que adorava contar vantagens.As meninas do curso morriam de medo de ficarem mal faladas, mas em geral, ele era um sujeito divertido e brincalhão, do tipo que fazia gosto ter por perto e Karen tornou-se sua amiga quase que instantaneamente.
Karen não sabia ainda, mas Carlos iria se tornar alguém muito valioso em sua vida.***
Karen estava com a mente sobrecarregada. Queria conversar com alguém, mas não conseguia desabafar nem com as amigas, nem com a tia. De repente lembrou de Felipe.
Não queria conversar com ele, só queria vê-lo... isso já distrairia sua mente.
Quando Karen chegou à igreja, a missa já tinha acabado a um bom tempo. Felipe estava aproveitando a folga para consertar o órgão de tubo da igreja.
Karen colocou um véu preto sobre os cabelos, ajoelhou num dos bancos, e fingiu rezar, mas na verdade, estava observando Felipe, que estava lindo, trabalhando distraído.
Felipe parou o que estava fazendo quando percebeu que tinha uma pessoa na igreja. Karen abaixou a cabeça, de modo que ele não a reconheceu de imediato, então ele parou o que estava fazendo e perguntou de longe.
- Bom dia! Por acaso vai precisar dos nossos serviços hoje?!
- Não! Hoje vim apenas para te ver!
Karen ergueu o rosto e descobriu o véu. O rosto de Felipe se iluminou como o de uma criança que acaba de ganhar um presente.
- Karen! Que surpresa boa! É muito bom te ver novamente!! Pensei que tivesse esquecido de mim.
Karen sorriu encabulada e tentou se explicar.
- Não é isso! Estive muito ocupada a semana toda, mas hoje vim especialmente pra te ver... e te convidar pra tomar um sorvete! Eu pago!
Felipe sorriu entusiasmado.
- Ótimo! Espere apenas uns instantes! Preciso guardar minhas ferramentas e já volto.

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Caleidoscópio
RomanceKaren volta ao litoral, para tentar desvendar seu passado, e para isso, vai contar com a ajuda do puro e singelo amigo Felipe, mas não imagina que está abrindo uma verdadeira caixa de pandora que irá abalar a sociedade litorânea!