Capítulo 7 - Adra

51 9 2
                                    

Adra observou enquanto as cinzas de seu pai caíam suavemente sobre a água corrente e agitada do Thanatos. A dor se espalhava por sua garganta, vinda diretamente do centro de seu peito, fluindo e se espalhando por ela como veneno em sua corrente sanguínea. Era como se não houvesse uma parte de seu corpo que não estivesse sendo lambida por chamas.

No bolso dela, amassado entre seus dedos, a carta do assassino era a única coisa que a mantinha em pé e respirando por mais dolorido que fosse. Aquilo enviava por todo o corpo de Adra uma fúria que a consumia com tanto ardor que ela temia se misturar às cinzas que agora seguiam com o rio.

Kia soluçava ao seu lado, soluços baixos e contidos que só atacavam com mais força o coração de Adra e faziam-na querer gritar com todos aqueles demônios presunçosos que olhavam para elas como se fossem poeira nos sapatos deles. Mas sua preocupação para com a mãe era mais imediata: desde que Carino morrera, Kia só falava quando lhe era solicitado e Adra precisava obrigá-la a comer.

Ela estava preocupada com a mãe.

Por isso Adra havia arranjado com Karli, sua tia materna, uma temporada para a mãe em Mávros, onde ela ficaria por um ano inteiro. Faria bem para Kia ficar longe de tudo o que a lembrava de Carino e isso daria a Adra a chance de entrar na Academia sem ter que se preocupar com o bem estar da mãe.

— Adra — a voz de Thalassa era muito baixa, mas Adra virou-se para ela, encarando os olhos escuros da amiga —, vou levar sua mãe para a entrada da ponte. Nós devemos ir.

Adra olhou em volta, para os demônios que as rodeavam — os colegas de trabalho de seu pai — e sentiu um puxão de rebeldia, aquela pontada que machucava seu orgulho todas as vezes que ela a ignorava. Então, olhando de volta para Thalassa, ela assentiu.

— Vou ficar aqui por mais alguns minutos.

Nem mesmo a amiga teve coragem de negar um pedido desses e se afastou com Kia, consolando-a. Adra sentiu uma pontada dolorosa ao perceber quão inútil ela estava sendo para a mãe, o quanto estava impotente para garantir a ela um mínimo de conforto.

— Seu pai era ótimo.

Adra observava os demônios finalmente se agrupando para prestar as devidas condolências a seu pai — todos eles mantendo distância dela. Exceto Damian. Ele era como uma fogueira ao lado dela, quente mesmo sob os ventos implacáveis que viajavam junto do Thanatos enquanto seus ombros se encostavam.

Ela se virou para ele, que a observava quietamente. Os olhos de Damian Kolasi eram como a Ecuridão com que ela lidara a vida toda aquela Escuridão cujos dialetos e canções Adra conhecia tão bem quanto a própria língua.

— Ele era — foi tudo o que ela respondeu, piscando para afastar as lágrimas que queimavam seus olhos quando seu peito se torceu em dor.

Os olhos de Damian acompanharam uma das lágrimas que desciam por sua bochecha e Adra deixou que ele estendesse a mão para o rosto dela, o dedo indicador capturando aquela lágrima, aquela única e solitária prova de seu luto, com gentileza.

Dentro daquela gota, como um universo inteiro, Adra podia ver sua dor em gavinhas de Escuridão quebrada e estilhaçada. E ela sabia que Damian também via aquilo.

Lentamente e com cuidado, ele levou sua lágrima para além dos corrimões de pedra cinzenta da Ponte Téfra. Por um segundo, aquela pequena gota de luto e dor pendeu entre eles, brilhando com os raios do sol de fim de tarde. Então, ela caiu da ponta do dedo de Damian, direto para o rio Thanatos, onde as cinzas de seu pai corriam para a Morte.

Adra podia jurar que sentiu quando aquela lágrima caiu nas águas do gigantesco rio. Ela sentiu como se pingasse em seu próprio coração, fazendo ondulações perfeitamente circulares crescerem dentro do peito dela e domando aquele veneno que a queimava por inteiro e ameaçava destruí-la completamente.

Todos os Anjos do ParaísoOnde histórias criam vida. Descubra agora