Capítulo 3 - Adra

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- Eu ofereci ajuda a um dos superiores do detetive Carino e achei que um ritual de memória poderia satisfazer as dúvidas da Guarda Real quanto a essa questão tão... desagradável - explicou Eupraxia antes que Spiridon pudesse voltar a falar, ignorando a expansão da tensão já forte pelo salão.

Um ritual de memória exigia muito de um grupo de bruxas e era feito em etapas extremamente delicadas. A primeira parte consistia em deixar que as sombras levassem sua magia para onde ocorrera o acontecimento escolhido, o que não era difícil. A segunda parte, um pouco mais complicada, dependia apenas da destreza da bruxa de tecer uma teia fina e intrincada com a própria magia para que a memória daquele acontecimento ficasse presa nela.

E a terceira, a mais perigosa de todas, era quando os outros bruxos se juntavam ao ritual: todos eles juntos construíam uma ponte que puxava a memória de dentro da mente da bruxa responsável pelas outras etapas e projetava-a em um espaço vazio como um teatro de sombras.

Adra olhou em volta, para os oficiais com semblantes desdenhosos e temerosos na mesma medida, então para as bruxas e bruxos cautelosos e nervosos. Ela não gostava nada da ideia de fazer um encantamento tão intrincado com tanta tensão assim no ar, mas a Guarda não aceitaria sair para que eles pudessem fazer o ritual.

Para aqueles demônios, era ver para crer. E eles não aceitariam nada além disso, porque demônios não confiavam em bruxas. Apenas o fato de terem aceitado a oferta de Eupraxia a um de seus amantes de alto nível era uma surpresa considerando como a Guarda Real tratava as bruxas. Mendigas dignas de pena na melhor das hipóteses, prostitutas cujos corpos e a dignidade eram gratuitos na pior.

- Muito bem - concordou Spiridon a contragosto. Nem mesmo ele seria capaz de negar algo tão importante quanto aquilo à Guarda Real - Mas se vamos fazer isso, eu quero nossa bruxa mais poderosa fazendo as primeiras etapas.

Claro que queria, pensou Adra, frustrada quando os olhares se voltaram para ela. Ela não gostava daquela atenção e não a queria, mas não tinha muita escolha sobre aquilo.

Apesar de seu poder, o ritual de memória só revelaria a identidade de alguém caso a bruxa que invocava a memória soubesse quem estava envolvido e os conhecesse. O máximo que os oficiais veriam seriam sombras e aquilo a preocupava. Adra esperava que eles não estivessem com muitas esperanças sobre aquilo, apesar da soberba de Eupraxia.

Suspirando com resignação, ela deu um passo a frente, encarando Eupraxia, que parecia prestes a expulsá-la dali, e ignorando o olhar fixo do detetive geral.

- Vamos em frente, então, se ninguém quiser protestar - disse ela, desafiando a bruxa matrona a falar qualquer coisa.

Apesar do aviso de Thalassa, ela não interferiu nesse embate, provavelmente chocada demais com a falta de prudência de Eupraxia. Aquilo era grande, mas com certeza não era bom, principalmente considerando que as chances de tudo dar errado eram altas demais.

As bruxas pareciam mais calmas agora que Adra fora escolhida para realizar aquela tarefa - era ela quem correria mais perigo, afinal - e acataram o pedido dela, posicionando-se em seus lugares. Spiridon assentiu para Adra ao passar por ela. O olhar escuro não pedia desculpas, mas Adra não queria pedidos de desculpas mesmo, então ela apenas assentiu de volta, caminhando até a ponta norte do círculo que as bruxas abriram no meio do salão.

Eupraxia tomou para si a tarefa de afastar os oficiais para um lugar que pudessem ver o que estava acontecendo, mas não ficassem no caminho da magia. Quando todos ficaram em silêncio, Adra fechou os olhos, se concentrando na Escuridão, nos pontos da sala que eram engolfados por ela.

Para as bruxas, a Escuridão era uma língua própria, que cantava para elas como velhas amigas, como sereias cantavam para marinheiros desavisados. Podiam ser más e boas e, principalmente, podiam ser controladas. E Adra conhecia cada canção e cada trocadilho, por isso deixou que fluísse ao redor dela, como um sopro de brisa noturna, gelada e úmida, esvoaçando seus cabelos e tentando se misturar à sua alma.

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