Capítulo 1

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Ela se chamava Carla, que significa mulher forte. Combinava com ela.

Observando-a ali em pé, as mãos seguras, o corpo tenso e os olhos alertas, não se ouvia um único ruído no ambiente. Ninguém, absolutamente ninguém, desgrudava os olhos dela. Podia mover-se devagar, mas nenhuma pessoa ali queria correr o risco de perder um gesto, um movimento. Toda atenção e concentração cravavam-se naquela figura esguia e solitária. Acordes de Chopin flutuavam romanticamente no ar. A luz enviesada projetava-se em seus cabelos presos com perfeição — volumosos, loiros, quase dourados. Esmeraldas cintilavam nas orelhas.

Tinha a pele um tanto acalorada, de modo que um tom róseo lhe acentuava as já salientes maçãs do rosto e a elegante estrutura óssea que só resulta da criação. A excitação e a intensa concentração escureciam os salpicos âmbar que lhe borrifavam os olhos cor de avelã. As mesmas excitação e concentração haviam formado um biquinho nos lábios suaves e delineados.

Embora vestida de branco, simples, sem quaisquer adornos, ela atraía o olhar tão irresistivelmente como uma borboleta em pleno e estonteante voo. Não emitia uma palavra, mas todos na cozinha esforçavam-se para vê-la e se adiantavam, retesados, como para captar o mínimo som.

O ambiente era quente, os cheiros, exóticos, e a atmosfera, tensa de expectativa.

Pela atenção que Carla dispensava aos que a cercavam, era o mesmo que estar ali sozinha. Só havia uma meta, uma finalidade. A perfeição. Ela jamais aceitara menos.

Com extremo cuidado, ergueu a forma final em losango e calcou a angélicano pão-de-ló recheado e embebido em rum, à moda Savarin, para finalizar odesenho que criara. As horas que já passara preparando a imensa e elaboradasobremesa foram esquecidas, assim como o calor, os fatigados músculos daspernas e os braços doloridos. O toque final, a aparênciade uma criação Carla Diaz, era de suma importância. Sim, teria um sabor perfeito, um aroma perfeito, e seria cortado com todo o primor. Mas se não parecesse perfeito, nada disso importava.

Com o cuidado de uma artista plástica concluindo uma obra de arte, ela ergueu o pincel para dar às frutas e amêndoas uma leve e delicada camada esmaltada de damasco.

Mesmo assim, todos continuavam calados.

Sem solicitar qualquer ajuda — na verdade, não toleraria — Carla começou a rechear o pão-de-ló com o saboroso creme, cuja receita mantinha em segredo.

As mãos firmes, a cabeça ereta, ela recuou para dar à criação um último olhar crítico. Era o teste final, pois tinha o olhar mais aguçado de todos quando se tratava de seu próprio trabalho. Cruzou os braços, o rosto sem expressão. Na enorme cozinha, o mínimo ruído de um alfinete caído na cerâmica teria reverberado como um tiro.

Lentamente, ela curvou os lábios, os olhos cintilando. Sucesso. Ergueu o braço e fez um gesto meio teatral.

— Podem levar — ordenou.

Quando dois assistentes começaram a transportar a resplandecente criação para fora da cozinha, aplausos irromperam.

Carla aceitou os cumprimentos como se os aguardasse. Havia um lugar para a modéstia, sabia, e também sabia que não se aplicava à sua sobremesa Savarin. Ficou, para dizer o mínimo, magnífica. Magnificência era o que o duque italiano quisera para a festa de noivado da filha, e pagara por isto. Ela simplesmente correspondera.

— Mademoiselle. — Foulfount, o francês especializado em frutos do mar, segurou-a pelos ombros. Tinha os olhos redondos e úmidos de admiração. — Incroyable... incrível — ele exclamou.

Beijou-a entusiasticamente na face, e com os dedos grossos, inteligentes, apertou-lhe a pele como se fosse uma fôrma de pão recém-assada. Carla sorriu, o primeiro sorriso em horas.

— Merci. — Alguém abrira uma garrafa de vinho em comemoração. Carla pegou duas taças e entregou uma ao chef francês. — Na próxima vez, trabalharemos juntos, mon ami.

Bebericou o vinho, tirou o chapéu de chef e saiu rápido da cozinha. Na enorme sala de jantar com piso revestido de mármore, iluminada por um candelabro, a Savarin já estava sendo servida e admirada. Seu último pensamento antes de sair foi dar graças a Deus que outra pessoa teria de limpar a bagunça.

Duas horas depois, já tirara os sapatos e fechara os olhos. Abrira um macabro romance policial com um assassinato misterioso quando o avião fazia a travessia sobre o Atlântico. Ia voltar para casa. Passara quase três dias inteiros em Milão, com a única finalidade de criar aquele prato singular. Não era uma experiência incomum para Carla. Já assara Charlotte Malakoff em Madri, flambara Crêpes Fourée em Atenas e moldara Île Flotante em Istambul. Graças a seu talento e um estonteante honorário, Carla Diaz criava uma sobremesa que viveria na memória muito tempo depois de consumida a última mordida, gota ou migalha.

Para satisfazer algum desejo, viajava, pensou vagamente, e sorriu em meio a um bocejo.

Considerava-se uma especialista, não diferente de uma cirurgiã talentosa. Na verdade, estudara, fora aprendiz e praticara por tanto tempo quanto vários profissionais respeitados da medicina. Cinco anos após passar pelas rigorosas exigências para tornar-se uma excelente chef cordon bleu em Paris — a cidade onde cozinhar é em si uma arte independente —, Carla tinha a fama de ser tão temperamental quanto qualquer artista plástico, além de ter a mente de um computador, quando se tratava de lembrar-se das receitas, e as mãos de um anjo.

Seu humor oscilava entre um cochilar na poltrona de primeira classe e reprimir o desesperado desejo de uma fatia de pizza de pepperoni.

Sabia que o tempo de voo passaria mais rápido se conseguisse ler ou dormir. Decidiu experimentar ambos, optando por um leve cochilo primeiro. Era uma mulher que valorizava o sono tanto quanto se orgulhava de sua receita de musse de chocolate.

Quando chegasse a Filadélfia, sua agenda seria, na melhor das hipóteses, agitada. Uma bombe — sobremesa gelada que consiste em uma fôrma redonda ou no feitio de um melão, feita de uma combinação de sorvetes, cremes de frutas e musses — a preparar para o banquete de caridade do governador, o encontro anual da Sociedade Gourmet, a demonstração que aceitara fazer para a televisão pública... e aquele encontro, lembrou sonolenta.

O que dissera mesmo a mulher com voz de pássaro ao telefone? — perguntava-se Carla. Artyson... não, Arthur Picoli III, da cadeia de hotéis Picoli. Excelentes hotéis, pensou, sem nenhum interesse genuíno. Quando viajava, ela prestigiava muitos deles em vários cantos do mundo. O Sr. Picoli III tinha uma proposta de trabalho para ela.

Carla imaginou que ele lhe pediria para criar alguma sobremesa exclusiva para a rede de hotéis, uma sobremesa à qual pudesse associar o nome Picoli. Ela não era avessa à ideia — nas circunstâncias certas. E com a remuneração certa. Claro que teria de investigar cuidadosamente toda a empresa Picoli antes de concordar em envolver seu talento ou nome. Se algum dos hotéis fosse de qualidade inferior...

Com um bocejo, decidiu pensar no assunto mais tarde — depois que houvesse conhecido a terceira personalidade, Arthur Picoli III, pensou mais uma vez com um sonolento e divertido sorriso. Gorducho, careca, na certa dispéptico. Sapatos italianos, relógio suíço, camisas francesas, carro alemão — e sem a menor dúvida se consideraria inesgotavelmente americano. A imagem que ela criara pairou na mente por um momento e, aborrecida, ela tornou a bocejar — e depois suspirou, quando a ideia da pizza mais uma vez invadiu seus pensamentos. Reclinou a poltrona ainda mais e decididamente se esforçou para dormir.

Sobremesa de CarlaOnde histórias criam vida. Descubra agora