Capítulo 5

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Fazer uma boa sobremesa desde o início não é uma questão simples. Criar uma obra-prima de farinha e ovos também é outra tarefa difícil. Sempre que Carla pegava uma vasilha, um liquidificador ou uma batedeira, achava que era seu dever criar uma obra-prima. Correto, como um adjetivo em conjunção com seu trabalho, era o insulto máximo. Correto, para ela, era o resultado alcançado por uma recém-casada com um livro de receitas aberto pela primeira vez no dia seguinte à lua de mel. Ela não simplesmente assava, misturava ingredientes ou gelava — concebia, desenvolvia e realizava. Um arquiteto, um engenheiro, um cientista não faziam nem mais nem menos. Quando decidira estudar a arte da haute cuisine, não o fizera levianamente e não o teria feito sem a meta da perfeição em foco. E continuava buscando a perfeição sempre que pegava uma colher.

Já passara a maior parte do dia na cozinha da mansão do governador. Outros chefs criavam espalhafatos com sopas e molhos — ou uns com os outros. Todo o talento de Carla concentrava-se na criação da mistura final, refinada, de gostos e texturas, na total beleza estética da bombe.

A forma que planejara já fora forrada com o bolo úmido que assara, depois ela o aparara sistematicamente até formar um desenho. Isso fora feito com moldes de uma maneira tão meticulosa quanto um engenheiro desenha uma ponte. A musse, um paraíso de chocolate e creme, já se achava dentro da cúpula da sobremesa. Esse elemento enganadoramente simples fora gelado logo pela manhã. Entre os preparativos, a mistura, a feitura e a montagem, Carla ficara em pé quase o tempo todo.

Agora, punha os preparativos iniciais da bombe numa mesa à altura da cintura, uma enorme vasilha de aço com bagas vermelhas esmagadas ao lado. Por suas firmes instruções, Chopin saía ondulante pelos alto-falantes da cozinha. O primeiro prato já estava sendo degustado na sala de jantar. Ela conseguia ignorar a confusão reinante à sua volta. Livrar-se da pressão de ter sua parte da refeição concluída e perfeita exatamente no momento certo. Tudo era rotina. Mas ali em pé, pronta para começar o passo seguinte, sentiu que sua concentração se dispersava.

Kartalian, pensou entre dentes cerrados. Claro que foi a raiva que mantivera a sua atenção divagando o dia todo. Não levara muito tempo para perceber que Arthur Picoli usara o nome de propósito. Saber disso, porém, não fizera a mínima diferença em sua reação... a não ser talvez o fato de que espalhara veneno em cima de dois homens, em vez de apenas um.

Oh, ele acha que é muito inteligente, decidiu Carla, pensando em Arthur — como fizera com demasiada frequência naquela semana. Deu três inspiradas revigorantes e examinou a cúpula dourada à frente. Pedir, logo a mim, que desse uma referência de Kartalian. Desprezível suíno francês, ela resmungou em voz baixa, referindo-se ao chef. Ao enconchar as primeiras bagas, decidiu que Arthur devia ser um suíno igual, até mesmo por considerar trabalhar com o francês.

Lembrava-se de cada contato frustrante e irritante que tivera com o homenzinho magrelo de olhos caídos, Kartalian. Passando cuidadosamente uma camada externa no bolo com as bagas esmagadas, pensou em dar-lhe uma brilhante recomendação. Ensinaria aquele americano sonso uma boa lição — ver-se atado por contrato a um imbecil pomposo como Kartalian. Embora esses pensamentos a enfurecessem, ela alisava delicadamente as bagas, arredondando e firmando a forma que planejara.

Atrás, um dos assistentes deixou cair uma panela com um estrondo e um tinido, e sofreu uma torrente de xingamentos. Nem os pensamentos, nem as mãos de Carla vacilaram.

Idiota presunçoso, cheio de si, ela pensou implacavelmente, dessa vez sobre Arthur. Num fluxo constante, começou a passar a camada do saboroso creme francês sobre as bagas. O rosto, embora fixo em concentração, traía a raiva no lampejo dos olhos. Um homem como ele deliciava-se em levar a melhor e superar o adversário em estratégia. Isso se revelara, ela lembrou, naquela fala tão melíflua, naquele verniz de sofisticação. Resfolegou um pouco ao começar a nivelar a camada de creme.

Preferia ter um homem com algumas arestas grosseiras a um tão polido que chegava a brilhar. Preferia um homem que sabia adoçar e curvar as costas a um de unhas manicuradas e ternos de quinhentos dólares. Preferia um homem que...

Parou de alisar o creme, quando os pensamentos se emparelharam à consciência. Desde quando vinha pensando em ter qualquer homem, e por que, pelo amor de Deus, usava Arthur para comparações? Ridículo.

A bombe era agora uma cúpula uniforme à espera de sua deliciosa camada de chocolate. Carla franziu o cenho ao examinar a criação quando uma assistente retirou as vasilhas vazias que obstruíam sua visão. Começou a bater a cobertura numa grande batedeira, enquanto duas cozinheiras discutiam sobre a espessura do molho da entrada.

Por falar nisso, continuaram fluindo suas ideias, era ridícula a frequência com que vinha pensando nele nos últimos dias, lembrando detalhes tolos... A cor dos olhos, quase do mesmo tom da água no lago da propriedade do pai dela em São Paulo. Como era agradável a voz dele, profunda, com aquela leve mas inconfundível inflexão do Rio. Como curvava a boca de um jeito quando parecia divertido, e de outro quando sorria educadamente.

Era difícil explicar por que ela notara essas coisas, e muito mais por que continuava pensando nelas dias depois. Como regra, não pensava num homem, a não ser quando estava com ele... e mesmo então só lhe concedia uma parte cuidadosamente regulada de sua concentração.

Agora, lembrou-se Carla, ao começar a espalhar a cobertura, não era hora de pensar em nada além da bombe. Pensaria em Arthur quando terminasse o trabalho, e lidaria com ele no jantar tardio com o qual concordara. Oh, sim — comprimiu a boca —, lidaria com ele, sim.

Sobremesa de CarlaOnde histórias criam vida. Descubra agora