A batida foi breve antes de Carla entrar. Trazia uma fina pasta de couro na mão. Fizera uma trança nos cabelos e a enrolara na nuca, de modo que se via uma sugestão dos fios dourados entremeados no castanho. Usava um tailleur cor de ameixa Chanel, simples e requintado, sobre uma blusa de renda de gola alta, que se erguia para emoldurar-lhe o rosto. O estrito profissionalismo de seu traje fez Arthur instantaneamente especular sobre o que ela usava por baixo... na certa alguma coisa sumária, sedosa e sensual, da cor da pele.
— Arthur. — Seguindo seu próprio sermão sobre prioridades, Carla estendeu a mão. Impessoal, a atitude profissional e formal. Não ia pensar no que acontecera quando ele tocara a boca na sua. — Trouxe a relação das mudanças de equipamento e sugestões das quais falamos.
— Ótimo. — Ele viu-a virar a cabeça quando J. P. se levantou da cadeira. E viu o brilho nos olhos dele, como sempre via quando na companhia de uma linda mulher. — Carla Diaz, José Picoli II. J. P., a Srta. Diaz vai administrar a cozinha aqui na Picoli House do Rio.
— Sr. Picoli.
Carla viu a sua mão envolta numa grande e calejada. Ele parece exatamente Arthur daqui a trinta anos, ela percebeu com um sobressalto. Distinto, curtido, com aquele perene toque de requinte. Então J. P. sorriu, e ela viu que Arthur continuaria sendo perigoso em três décadas.
— J. P. — ele corrigiu, levando os dedos dela aos lábios. — Bem-vinda à família.
Carla disparou um rápido olhar a Arthur.
— Família?
— Consideramos qualquer pessoa que se associa à Picoli House parte da família. — J. P. indicou-lhe com um gesto a poltrona de onde se levantara. — Por favor, sente-se. Deixe-me pegar um drinque para você.
— Obrigada. Talvez água Perrier. — Ela viu-o atravessar a sala antes de sentar-se e pôr a pasta no colo. — Creio que conhece minha mãe, Mara Diaz.
Isso o deteve. J. P. voltou-se, a garrafa de Perrier ainda numa das mãos, o copo ainda vazio na outra.
— Mara? Você é filha de Mara? Por Deus.
Anos antes — fazia agora quantos... vinte? — durante um período de crise conjugal nos dois lados, ele tivera um breve e tórrido caso com a mulher. Haviam-se separado em termos amigáveis e ele se reconciliara com a sua esposa. Mas às duas semanas com Mara haviam sido... memoráveis. E agora, no escritório do filho, servia Perrier à filha dela. O destino, pensou ironicamente, é um filho da mãe.
Se Carla já suspeitava que a mãe e o pai de Arthur haviam sido outrora amantes, agora tinha certeza. Suas ideias sobre o destino espelhavam diretamente as dele, ela pensou, cruzando as pernas. Filho de peixe, peixinho é?, perguntava-se. Oh, não, não neste caso. J. P. continuava olhando-a fixo. Por uma razão que ela não entendia inteiramente, decidiu facilitar as coisas para ele.
— Mamãe é uma cliente leal das Picoli Houses; não se hospeda em nenhum outro hotel. Eu já comentei com Arthur que um dia jantamos com o senhor seu pai. Ele foi muito cavalheiresco.
— Quando lhe convém — retrucou J. P., aliviado.
Ela sabe, concluiu, e desviou o olhar para o filho. Viu ali uma expressão de concentração que conhecia muito bem. E também ele saberá, se eu não tomar cuidado, decidiu. Estava em maus lençóis, ruminou. Após vinte anos, eu talvez ainda estivesse. Sua mulher era o amor de sua vida, a melhor amiga, mas vinte anos não eram um tempo longo o bastante para se estar a salvo de uma transgressão.
— Então... — ele terminou de servir a Perrier e levou-a até ela — ...você decidiu não seguir os passos de sua mãe e se tornou em vez disso uma chef.
— Tenho certeza de que Arthur concorda que seguir os passos dos pais é muitas vezes traiçoeiro.
O instinto disse a Arthur que não era de trabalho que ela falava. Houve uma troca de olhares entre o pai e Carla que ele conseguiu compreender.
— Depende de aonde leva o caminho — ele contestou. — No meu caso, preferi encarar como um desafio.
— Arthur puxou isso do avô — interferiu J. P. — Tem esse tipo de lógica misteriosa.
— É — murmurou Carla. — Já o vi em ação.
— Parece que fez a opção certa — continuou J. P. — Arthur me falou das suas bombas.
Devagar, ela virou o rosto até nivelar mais uma vez os olhos com os de Arthur. Sentiu os músculos do estômago e das coxas se contraírem com a lembrança, mas manteve a voz calma e impassível.
— Falou? Na verdade, minha especialidade é a bomba.
Arthur recebeu seu olhar diretamente.
— É uma pena que não tivesse uma de sobra na outra noite.
Havia vibrações ali, pensou J. P., que não precisavam ricochetear de uma terceira pessoa.
— Bem, vou deixar vocês dois seguirem adiante com seus negócios. Preciso ver algumas pessoas antes da reunião da diretoria. Foi um prazer conhecê-la, Carla. — Tomou-lhe mais uma vez a mão e segurou-a, travando os olhos nos dela. — Por favor, dê minhas melhores lembranças à sua mãe.
Ela viu que os olhos eram iguais aos de Arthur, na cor, forma e atração. Curvou os lábios.
— Darei, sim.
— Arthur, vejo você esta tarde.
O filho apenas murmurou um assentimento, observando mais Carla que o pai. A porta fechou-se depois que ele falou.
— Por que tenho a impressão de que vocês estavam transmitindo mensagens diante de mim? — perguntou Arthur.
— Não faço a mínima ideia — respondeu Carla, erguendo a pasta. — Eu gostaria que você desse uma olhada nesses papéis enquanto estou aqui, se tiver tempo. — Abrindo o zíper da pasta, ela retirou-os. — Assim, se não houver quaisquer questões ou discordâncias, podemos resolver tudo agora, antes que eu comece lá embaixo.
— Tudo bem. — Ele pegou a primeira folha, mas examinou Carla por cima em vez de lê-la. — Este traje elegante é para me manter a distância?
Ela lançou-lhe um olhar altivo.
— Não tenho a mínima ideia do que você está falando.
— Tem, sim. E em outra ocasião eu gostaria de despir isso, peça por peça. Mas no momento, vamos jogar à sua maneira.
Sem outra palavra, baixou o olhar para o papel e começou a ler.
— Suíno arrogante — disse Carla em claro e bom som.
Como ele não se deu nem ao trabalho de erguer os olhos, ela cruzou os braços. Queria um cigarro para lhe dar o que fazer com as mãos, mas se recusou esse luxo. Ia ficar ali sentada como uma pedra, e quando chegasse a hora, ia defender cada uma das mudanças que relacionara. E vencer cada uma delas. Nesse nível, ela estava no controle completo.
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Sobremesa de Carla
FanfictionUma chef refinada, mas viciada em junk food? Quanto mais Arthur Picoli conhece a extraordinária confeiteira Carla Diaz, mais fica intrigado e decidido a contratá-la. Arthur quer o melhor profissional do ramo, e Carla possui uma experiência excelente...