Capítulo 36

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Quando Carla voltou à cozinha, ainda repassava na mente a conversa com Mara. Era raro a mãe insistir em saber detalhes de sua vida pessoal, e mais raro ainda dar conselhos. Na verdade, a maior parte da hora que haviam passado juntas fora dedicada às virtudes de Silvio Morrison, mas naqueles primeiros momentos Mara dissera coisas destinadas a fazê-la pensar — a fazê-la começar a duvidar de sua lista de prioridades.

Quando se aproximou das portas de vaivém da cozinha, porém, e os sons da discussão vieram ao seu encontro, ela soube que o pensamento teria de ficar para depois.

— Minha casserole está perfeita.

— Tem leite demais e queijo de menos.

— Você jamais admitiu que minhas caçarolas são melhores que as suas.

Talvez a cena fosse risível — o gorduxo Marcos e o enorme Rodolfo, o gorduxo chef que não chegava ao peito do superior. De pé, os dois fuzilavam-se com os olhos, cada um segurando firme uma casserole de espinafre. Poderia ser risível, pensou Carla com cuidado, se o resto da equipe da cozinha não tomasse partido enquanto os pedidos de almoço esperavam.

— Trabalho inferior — respondeu Marcos.

Ainda não perdoara Rodolfo por ter ficado doente durante cinco dias.

— Suas casseroles é que são trabalho inferior. As minhas são perfeitas.

— Leite demais — disse Marcos, muito sólido. — Não tem queijo bastante.

— Algum problema? — perguntou Carla, interpondo-se entre os dois.

— Esse caipira fantasiado de cozinheiro tenta fazer essa papa de folhas passar por casserole de espinafre.

Marcos tentou tomar o prato de vidro, mas descobriu que o caipira era surpreendentemente forte.

— Esse bolo de massa que se chama chef está com ciúmes porque eu sei mais de legumes que ele.

Carla mordeu com força o lábio inferior. Diabos, era engraçado, mas na hora errada.

— Talvez o resto de vocês possa voltar ao trabalho — começou, tranquila — antes que o restante dos clientes vá para o restaurante mais próximo em busca de um serviço decente... — Voltou-se para os dois adversários. A qualquer momento, pensou, haveria dentes arreganhados e rosnados. — Pelo que entendo, esta é a casserole em questão.

— O prato é uma casserole — disse Marcos. — O que tem dentro é lixo.

Tornou a puxá-la.

— Lixo! — guinchou ultrajado o outro cozinheiro e arreganhou os lábios. — Lixo é o que faz passar por costela de primeira. A única coisa comível no prato é o minúsculo ramo de salsa que você põe.

Puxou de volta.

— Cavalheiros, eu posso fazer uma pergunta? — Sem esperar pela resposta, Carla tocou com o dedo o prato. Ainda estava quente, mas esfriando rápido. — Alguém provou a casserole?

— Eu não provo veneno. — Marcos deu outro puxão no prato. — Veneno eu despejo na pia.

— Eu não deixaria... esse boi provar uma colher de meu espinafre. — Rodolfo tornou a puxar de volta. — Ele contamina o prato.

— Tudo bem, crianças — disse Carla num tom doce que fez voltar a raiva dos dois contra ela. — Que tal eu testar?

Os dois entreolharam-se com cuidado.

— Diga a ele para soltar meu espinafre — insistiu Rodolfo.

— Marcos...

— Ele solta primeiro. Eu sou o superior dele.

— Rodolfo...

— A única coisa superior nele é a gordura.

E o cabo de guerra recomeçou.

Agora impaciente, Carla ergueu as mãos.

— Tudo bem, já chega!

Talvez fosse o choque de ter de elevar a voz, coisa que ela nunca fizera na cozinha — ou talvez o fato de o próprio prato começar a ficar escorregadio de tanto manuseio. Seja como for, às suas palavras, a casserole caiu das mãos dos dois com força. Bateu na beira do balcão e despedaçou-se, e voou vidro para todos os lados antes mesmo de prato e conteúdo caírem no chão. Marcos e Rodolfo explodiram em insultos e acusações.

Distraída pela dor no braço direito, Carla baixou os olhos e viu o sangue começar a escorrer de um talho de dez centímetros. Espantada, ela olhou-o por uns três segundos, antes de a mente rejeitar por completo a ideia de que aquele sangue, seu sangue, podia sair tão fácil.

— Desculpem — conseguiu dizer por fim. — Vocês acham que podem terminar esse round antes que eu me esvaia em sangue?

Rodolfo baixou o olhar, uma torrente de insultos tremendo na língua. Em vez disso, arregalou os olhos para a ferida e explodiu numa enxurrada de palavras desconexas.

— Se você parasse de interferir — começou Marcos, avistando o sangue a escorrer pelo braço dela. Ficou pálido e, para surpresa de todos, se mexeu como um raio. Pegando um pano limpo, apertou-o contra o ferimento. — Sente-se — ordenou, e encaminhou-a para um tamborete. — Você — gritou, para ninguém em particular —, limpe essa bagunça. — Já fazia um torniquete. — Relaxe — disse a Carla, com não costumeira gentileza. — Quero ver se é fundo.

Tonta, ela assentiu com a cabeça e manteve os olhos grudados no vapor de uma panela do outro lado da cozinha. Na verdade não doía tanto, pensou, a visão entrando e saindo de foco. Na certa imaginara aquele sangue todo.

— Que diabo está acontecendo aqui? — Ela ouviu vagamente a voz de Arthur atrás. — Pode-se ouvir o barulho aqui até no restaurante. — Aproximou-se a passos largos, decidido a dar a Carla a escolha entre o desemprego e a coexistência pacífica. O pano manchado de sangue o fez parar imediatamente. — Carla?

— Um acidente — apressou-se a dizer Marcos, enquanto ela balançava a cabeça para desanuviá-la. — O corte é profundo. Ela vai precisar de pontos.

Arthur já tomava o pano das mãos dele e empurrava-o para o lado.

— Carla, como diabos aconteceu isso?

Ela se concentrou no rosto dele e registrou preocupação, e talvez raiva nos olhos, antes de tudo recomeçar a girar. E então cometeu o erro de baixar os olhos para o braço.

Casserole de espinafre — disse tolamente, antes de deslizar desmaiada do tamborete.

Sobremesa de CarlaOnde histórias criam vida. Descubra agora